Gestores públicos precisam valorizar educação infantil como
política que dá retorno de médio a longo prazo. Quem opina é Hermínia Dorigan
de Matos Diniz, promotora de Justiça do Centro de Apoio às Promotorias de
Educação do Ministério Público do Paraná (MP-PR). Em entrevista concedida à
Ágora, ela aponta caminhos para que o município leve a sério o futuro de
Curitiba e de seus cidadãos.
ÁGORA | Porque o
MP acompanha tão de perto as políticas do município para a educação infantil?
HERMÍNIA DINIZ |
Nós tivemos, em 2009, a Emenda Constitucional nº 59. O que ela mudou nesse
cenário? Passou a ser também obrigação das famílias a frequência das crianças
de quatro e cinco anos na pré-escola. O que, até então, era obrigatório somente
a partir do primeiro ano, quando a criança começa o Ensino Fundamental, passou
a ser obrigatório a partir dos quatro anos, que é a pré-escola. Desde 2009?
Não. A Constituição Federal deu um prazo: a partir de 2016 a frequência seria
obrigatória. Mas a obrigação de ofertar a vaga o prefeito sempre teve. Desde
2016, desde 2009, desde 1988, com a Constituição Federal.
ÁGORA | E quantas
vagas deveriam ser disponibilizadas?
HD | Existem 44
mil crianças de quatro a cinco anos em Curitiba. Então, desde 2009, já haveria
de ter um planejamento estratégico do município pra que, progressivamente,
fosse implementando essas vagas pra que quando chegássemos, agora, em 2016 as
vagas estarem todas as 44 mil disponibilizadas. Porque, além da obrigação do
prefeito, passaria a ser também obrigação dos pais matricularem essa criança.
ÁGORA | E se,
para atender à obrigatoriedade da matrícula aos quatro anos, a Prefeitura
fechasse turmas de 0 a 3?
HD | O STF já
reconheceu que a Constituição estabelece um patamar de conquistas da sociedade,
chamado Princípio da Proibição do Retrocesso. Significa, por exemplo, que não
se pode diminuir o número de vagas em berçários para abrir vagas aos alunos de
quatro e cinco anos, mesmo que tenha se tornado obrigatória essa matrícula.
Fazer isso é falsificar o cumprimento da Constituição. Fazer isso é falsificar
o comando constitucional. O prefeito de qualquer cidade do Brasil não pode
diminuir o número de ofertas que já tinha – e nem tornar período integral em
meio período, por exemplo – pra dizer que está oferecendo mais vagas para
atender à nova demanda criada pela PEC 59. Isso se chama retrocesso social. É
fraude de política social e é fraude processual. Os prefeitos dizerem hoje que
não estão preparados para assumir essa demanda é confessar a própria
incompetência porque desde 2009 a Constituição já lhes disse que a obrigação
era criar progressivamente até 2016 as novas vagas
ÁGORA | Então não existe justificativa legítima para o fechamento de vagas em berçários?
HD | O número
de vagas de zero a três não pode diminuir. Se diminuir, o prefeito está
cometendo uma infração, está violando um princípio constitucional. Pra dizer a
verdade, ele está cometendo uma improbidade administrativa.
ÁGORA | Em
campanha eleitoral, em 2012, Gustavo Fruet prometeu abrir 15 mil vagas em
centros municipais de educação infantil (cmeis). Como a Promotoria acompanha
isso junto à gestão municipal?
HD | A
dificuldade do Ministério Público era saber quantas crianças estão na lista de
espera. Quem detém isso é o próprio poder público, que tem o dever de ofertar
essa política pública, mas é omisso. A Prefeitura negava a existência de listas
de espera e o MP foi atrás. Nós fizemos um trabalho articulado junto com os
nove Conselhos Tutelares de Curitiba e traçamos um plano de sistematicamente
anotar toda e qualquer procura de pais nas nove Regionais de Curitiba sobre a
necessidade de vaga na educação infantil. E nós começamos, aqui na Promotoria,
a autuar os procedimentos – um por um, até chegarmos num número superior a 10
mil crianças. Dez mil procedimentos com criança esperando vaga em escola de
educação infantil.
ÁGORA | Como foi
o diálogo com o município nesses últimos seis anos?
HD | Em 2014 foi
nossa última tentativa junto ao município de Curitiba de que o prefeito
municipal assumisse, a partir dali, o compromisso de universalizar até 2016
essas vagas e, também, atender essas que estavam na fila de espera. Fazendo as
contas do que a Prefeitura atendia até aquele momento e mais o que ela teria
que atender até chegar ao número total de 44 mil, ainda haviam mais 15 mil
crianças. O município, portanto, teria que fazer outros 120 centros municipais
de educação infantil. Então nós alertamos mais uma vez o prefeito municipal e
demos um prazo de 30 dias.
ÁGORA | O que aconteceu após esse prazo de 30 dias?
HD | Nós
recebemos uma resposta por meio da Procuradoria Geral do Município que, em
poucas linhas, informou ao Ministério Público que, por eles entenderem que a
política pública do município está satisfatória e é suficiente para a educação
infantil, eles não iriam assinar o TAC [Termo de Ajustamento de Conduta].
ÁGORA | A culpa é
de quem?
HD | Aqui em
Curitiba, especificamente, a cada um desses anos em que foi vigente o inquérito
civil [do MP], foi informado o prefeito em exercício e todos os vereadores em
exercício. Quando lá chegava, na Câmara de Vereadores, o projeto de lei do
prefeito em desconformidade com a necessidade da educação infantil, eles eram
informados dessa inconsistência. E, em que pese isso, nunca nenhum projeto
sofreu nenhuma mudança da forma como foi apresentado pelo senhor prefeito.
ÁGORA | Frente à
negativa da Prefeitura, o MP decidiu entrar com uma Ação Civil Pública na
Justiça. O que aconteceu?
HD | De acordo
com uma lógica processual, não restava alternativa ao Ministério Público senão
a de propor a Ação Civil Pública. Então, desde 2014, aquelas 24 mil crianças
estão aguardando uma resposta do Judiciário, que não complementou sua resposta,
não veio em socorro dessas crianças pra garantir que esses valores ficassem no
orçamento público.
ÁGORA | Porque,
no entendimento da Promotoria, seria pouco o valor necessário para resolver o
problema da educação infantil no município?
HD | Tomando em
conta que o orçamento público de Curitiba, anual, é de R$ 8 bilhões, se a
Prefeitura construísse os 120 cmeis que faltam para atender a toda a demanda
manifesta do município, não teria um impacto superior a 3% desse orçamento. Por
outro lado, Curitiba destinou R$ 220 milhões para a Copa, R$ 84 milhões para a
Ponte Estaiada, mas não destinou recursos para matricular as crianças. Isso é
escolha do gestor.
Mais rica etapa do aprendizado, educação infantil é a menos valorizada
Na continuidade da entrevista com Hermínia Diniz, promotora de Justiça da Educação do MP-PR, conversamos sobre aspectos humanos da educação pública. Afinal, as políticas estão aí para atender às pessoas. E, se ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, as pessoas se educam entre si, mediatizados pelo mundo, como disse Paulo Freire, então é preciso dar condições e oportunidades para que esse mútuo desenvolvimento aconteça.
ÁGORA | Qual é a importância das crianças frequentarem o cmei?
HERMÍNIA DINIZ | Neurocientistas descobriram que os pedagogos estavam certos em intuir que o ensino era tão importante quanto o cuidado no desenvolvimento da criança. São os estímulos que levam à formação das conexões entre neurônios, chamadas de sinapses. Segundo os cientistas, o momento mais rico na formação dessas conexões acontece até aos quatro anos. Então a criança que já ficou fora do sistema de ensino até essa idade já perdeu o período mais precioso de sua vida de desenvolvimento neurológico. A vaga no berçário, portanto, é importante porque esse é o período mais rico do desenvolvimento neurológico.
ÁGORA | E como valorizar a educação infantil?
HD | Uma vaga [em cmei] importa em estrutura física, mas o que é mais importante é o aspecto humano. É o profissional que vai gerenciar o desenvolvimento humano, o professor mais importante de qualquer etapa da educação que a constituição prevê, pois trabalha com o aluno mais frágil e que tem mais potencial a ser desenvolvido. E, pra garantir esse trabalho, [a Prefeitura] precisa abrir edital de concurso público, dimensionar quantos professores precisa em cada unidade, garantir a realização da hora-atividade pra se preparar e preparar o material que irá desenvolver com a criança. Também os vencimentos tem que ser, no mínimo, o piso nacional dos professores.
ÁGORA | Como o cidadão pode ajudar?
HD | É nosso dever cívico trazer à tona as deficiências das políticas públicas. Podem procurar o Ministério Público. Nosso endereço está no site da Promotoria da Educação (educacao.mppr.mp.br). Não precisa vir aqui se não puder, pode passar um e-mail, pode telefonar, pode mandar sua denúncia, sua reclamação, sua necessidade, da maneira como puder.
VERBAS
ORÇAMENTO MUNICIPAL: R$ 8.000.000.000,00 +
COPA DO MUNDO (gasto realizado): R$ 220.000.000,00 –
PONTO ESTAIADA (gasto realizado): R$ 84.000.000,00 –
120 CMEIS (investimento não realizado): R$ 288.000.000,00 º