24 horas num acampamento sem terra

ÁGORA, REPORTAGEM ESPECIAL – Quedas do Iguaçu, município do centro-oeste do Paraná. No
final da tarde de uma quarta-feira, semana véspera de carnaval, chegamos ao
acampamento Dom Tomás Balduíno, formado em julho de 2015 por famílias do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O acampamento tem uma população de 1,2 mil famílias, entre
elas cerca de 400 crianças, é 70% estruturado com casas de madeira. Alguns
permanecem em barracos de lona. Os pequenos luxos das moradias são uma lâmpada
e uma tomada ligada à energia elétrica por casa, além de água encanada na pia.
Também há estrutura de banheiro, ainda que as instalações sejam precárias.

Uma vez por semana, médicos cubanos do programa Mais Médicos
prestam atendimento de saúde às famílias. A escola itinerante já está em
funcionamento com todas as séries, inclusive ensino médio, e conta com
estrutura do Estado, que garante luz, internet, material escolar e os
professores contratados.

A estrutura para instalação de escola é sempre prioridade
nos acampamentos. “Temos a escola como estratégia de resistência. A proposta
pedagógica é diferenciada”, conta Juliana de Melo, jovem de 19 anos formada no
magistério, uma das professoras que é também moradora de acampamento e que
assumiu turmas sem ajuda de custo e sem o reconhecimento inicial da escola.

Luta diária

Os moradores acampados se reúnem às 7h30 para o café da
manhã coletivo e juntos seguem para uma área em que crescem plantações de
sementes crioulas de milho e feijão, além da produção de alimentos como
mandioca, para subsistência dos moradores do local.

O movimento prioriza a produção agroecológica, a luta pela
comida sem veneno, saudável como processo de formação das famílias acampadas. É
tarefa semanal das famílias cortar pinus para produzir alimentos. E sem acesso
à tecnologia.

“Nós não queremos um pé de pinus dentro dessa área, queremos
assentamento para a reforma agrária”, disse Rudmar Moeses, um dos coordenadores
do acampamento. O acampamento é organizado em 50 grupos e cada grupo tem um
representante na coordenação.

A cidade de Quedas do Iguaçu vive em ebulição desde a
formação deste acampamento, que ocupa uma área que a empresa madeireira Araupel disputa judicialmente com a União Federal. A disputa envolve 63 mil hectares de
terras férteis que a empresa utiliza para a plantação de pinus e eucalipto.

Cidade dividida

O investimento midiático da Araupel para criminalizar o
movimento é notoriamente forte. Passa por anúncios de página inteira publicados
em jornais impressos locais, inserções na televisão, espalhando o temor do
desemprego se a empresa fechar.

“Quando ocupamos o Herdeiros da Terra, a Araupel era mais
forte. Agora com o Dom Tomás, a população está dividida. A proposta da reforma
agrária tem visibilidade, o debate está aberto”, diz Wellington Lenon,
comunicador popular de 26 anos, que mora no acampamento Herdeiros da Terra.

Os comerciantes não apoiam abertamente o MST, mas se
beneficiam da venda de materiais de construção, abrem crediário nos mercados e
farmácias e, mais que isso, doam alimentos diariamente para que coletivamente
um sopão seja servido para as crianças acampadas. Todos os dias, às 15 horas, é
formada uma fila na cozinha coletiva do acampamento. Mulheres, homens e
crianças chegam com suas panelas e vasilhas para levar a comida para casa.

Estivemos com o prefeito de Quedas do Iguaçu, Edson Prado,
conhecido como Jacaré. Ele contou que é acusado pela Araupel de apoiar o
movimento, mas não afirma que apoia. Em contrapartida, Jacaré está articulando
com o governo estadual a implantação de uma cooperativa de laticínios para
beneficiar pequenos produtores de leite, nos moldes da Terra Viva, de Santa
Catarina, que faz o beneficiamento de produtos do MST. A cooperativa traria ao
município a arrecadação de impostos da produção leiteira do MST.

Ainda em fevereiro, o prefeito esteve em uma audiência com o
Secretário da Agricultura e do Abastecimento do Estado do Paraná, Norberto
Ortigara, para debater a readequação da estrada que faz ligação entre as
rodovias PR 473 e BR 158 nos municípios de Quedas do Iguaçu e Rio Bonito do
Iguaçu respectivamente. A obra é considerada fundamental para a viabilização do
projeto de instalação do laticínio.

Realização dos sonhos

O assentamento Celso Furtado, localizado também em Quedas do
Iguaçu, é responsável pela produção de três milhões de litros de leite por mês,
abastecendo 17 empresas de laticínios de outras cidades. Lá vivem 1.400
famílias, em lotes de cinco alqueires.

Anelio Moraes e sua esposa, Lucimar, contam que desde 1999
viveram acampados às margens da BR 158 e foram assentados em 2005, quando
começaram a produção leiteira. Atualmente, com 18 vacas, produzem até 5 mil
litro de leite ao mês, que é a renda familiar.

Quedas do Iguaçu tem 34 mil habitantes, 8 mil empregos com
carteira assinada, sendo 1.200 na Araupel. E cerca de 5 mil famílias acampadas
aguardando a reforma agrária. A idealização do sonho da reforma agrária, de
viver e produzir em seu pedaço de terra, aparece como justifica para tamanho
sacrifício dos tempos de acampamento.

Áreas da Araupel pertencem à União

Em maio de 2015, a Justiça Federal de Cascavel reconheceu que uma região de 23 mil hectares utilizada pela Araupel pertence à União e condenou a empresa a restituir R$ 75 milhões que recebeu num acordo para instalação do assentamento Celso Furtado na área, onde também foi formado em 2014 o acampamento Herdeiros da Terra, localizado no município vizinho de Rio Bonito do Iguaçu.

No dia 18 de dezembro do ano passado, o juízo da 2ª Vara Federal de Cascavel declarou como domínio da União a área Rio das Cobras, de 10,7 mil hectares, também ocupada pela Araupel. A decisão manteve a empresa na área apenas como usuária.

Mulheres promovem novas ocupações em Jornada de Lutas

Entre os dias 06 e 09 de março, as mulheres do MST da região Centro Oeste do Paraná promoveram diversas ações em áreas utilizadas pela empresa Araupel.

– 450 famílias ocuparam em Rio Bonito do Iguaçu uma área denominada Guajuvira, em Pinhal Ralo;

– 700 famílias ocuparam as fazendas Dona Hilda e Santa Rita. As duas áreas com 2,3 mil hectares fazem parte de Rio das Cobras;

– 5 mil mulheres eliminaram mudas de eucalipto e pinus da estufa da sede da Araupel.

As mobilizações são parte da Jornada Nacional de Luta das Mulheres Camponesas, que em 2016 traz o lema “Mulheres na luta em defesa da natureza e alimentação saudável, contra o agronegócio”.

NÚMEROS

Quedas do Iguaçu – 34 mil habitantes

Acampamento Dom Tomás Balduíno – 1.200 famílias

Assentamento Celso Furtado – 1.400 famílias

Araupel – 1.200 funcionários

Área em disputa – 63 mil hectares

Produção de leite no assentamento Celso Furtado – 3 milhões de litros por mês