Brasil está atrasado no debate sobre a Ditadura

O Sismuc, em parceria com o Centro Jesuíta de Cidadania e Ação Social (Cepat), promove
“Os anos da ditadura vistos pelo cinema”. São cinco encontros com filmes sobre
o período militar, incluindo debate. O primeiro evento teve a exibição do filme
‘Os 50 anos da Ditadura Militar. Revisitando a história’, comentado por Pedro
Bodê, que é professor
e pesquisador das Ciências Políticas na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
integrante da Comissão Estadual da Verdade do Paraná.

Para
o sociólogo, o Brasil está atrasado em relação às Comissões da Verdade formadas
na Argentina, Chile e África do Sul. O último lugar se deve a tentativa de
esquecer os malefícios do período. “Esse debate tem que ser aberto, senão é
feito pela metade e não é verdadeiro. Ele é mentiroso. No Brasil, nossa
conciliação busca o esquecimento. Nos outros países, o objetivo é conciliar
lembrando”, compara.

Confira a entrevista que o Sismuc fez com o sociólogo.

Sismuc: No Brasil,
foram criadas diversas Comissões da Verdade em nível federal, estadual e
municipal. Isso colabora para o debate ou pode gerar conflitos como sobre a
morte de Juscelino Kubitschek ?

Pedro Bodê:Isso
é uma coisa muito bem lembrada. As comissões não são homogêneas e não deveriam mesmo
ser. Elas têm diversos representantes de diversas forças políticas, organizações
e instituições. Isso produz divergências, mas que devem ser vistas
positivamente. Eu tenho a impressão que isso enriquece. O que vai ficar para o
debate público? Há setores da Comissão Nacional que não confirmam o assassinato
de JK e outros que sim. Portanto, o simples fato de pautar este elemento já é
muito importante. Neste aspecto, o conflito não deve ser visto como algo
negativo.

Sismuc: Brasil,
Chile, Argentina e África estão revendo o período. Quem está mais avançado
neste debate?

PB: O que está menos avançado somos nós. No caso dos outros países, eles conseguiram produzir
enorme reflexão interna. Por outro lado, onde existem resquícios maiores é o
Brasil. No caso da África do Sul não se fala de um regime de vinte anos, mas de
uma vida inteira de colonização branca. Portanto, é diferente os efeitos e
porque se consegue mais sucesso. Agora, quanto a Chile e Argentina, na punição,
eles estão mais avançados.

Sismuc: O debate
sobre a Ditadura não se restringe somente a figura dos generais. Quer dizer, a sociedade, a imprensa, como a
Folha de São Paulo que chama o período de Ditabranda, não apoiaram o regime?

PB: O que tem acontecido agora é que esse debate tem sido
pautado. A gente tem buscado falar em
Ditadura Civil Militar. Se O Globo fez uma “mea culpa”, os generais, pelo contrário,
afirmam que o veículo fazia parte do processo. Logo, não podemos esperar de
associações que participaram do processo fazer apenas uma reparação interna.
Por isso, um dos pontos que tem sido muito discutido é a presença civil
articulada com a força militar.

Sismuc: Uma das características
na Ditadura brasileira é a força. Um resquício é a Polícia Militar?

PB: O nosso sistema de justiça criminal tem na PM o aparelho
que chama mais atenção. Como disse uma vez um general: é um miniexército. Por ter contato direto com a população, ela é
a representante mais visível do resquício da Ditadura Militar. Eu defendo a
desmilitarização das policias. Isso era pautado pelo PT antes de ser
governo. Agora está voltando com a
proposição da PEC 51 (Projeto de Emenda Constitucional). Os policiais de base
não querem mais a atual estrutura. Eles acreditam que vivem uma espécie de
Ditadura na mão de seus superiores. A saída é desmilitarizar, unificar e ter
carreira única para as categorias policiais.

Sismuc: Ainda neste
tema, como o senhor avalia as prisões e coerções durante as manifestações e no
período pré Copa? Há relação na conduta do Estado contra esses manifestantes
com o período da Ditadura?

PB: Completa. Os movimentos de questionamento da condução do
país tiveram diversos sujeitos. Tinha desde grupos muito organizados até
pessoas que viram pela primeira vez uma grande manifestação desde as Diretas Já
(1984). A forma como os governos e suas policias lidaram é um exemplo marcante
disso. A desocupação da favela do Pinheirinho (em SP, em 2012), a abordagem a
grevistas, a maneira como se lida com o conjunto de forças sociais é exatamente
como a Ditadura fez. A diferença é só um pouco mais de cuidado porque mal ou
bem o Brasil se diz uma democracia e tem que explicar ao mundo como o país
permite que sua polícia haja com violência contra protestos legítimos.

Sismuc: Atualmente,
principalmente nas redes sociais, há uma espécie de nostalgia com relação ao
regime. Por que jovens ou filhos
daqueles que viveram na Ditadura possuem esse discurso?

PB: Há vários elementos a serem observados. Um deles é a
falta de memória. Por isso que é importante discutir esse tema para essas
gerações que não vivenciaram. Outro elemento é daqueles que, passado algum
tempo, acham que na Ditadura era melhor do que hoje. A principal crítica é com relação à
corrupção. Ora, o governo militar, em 1964, implementou 1,5 mil processos de
corrupção. Menos de dez foram cassados. A própria Ditadura promoveu seus
esquemas de corrupção como faturamento de obras, o escândalo dos petrodólares (1973).
O próprio endividamento é resultado de roubo. Portanto, claro que falta
informação mínima para essas pessoas.
Mas o principal é que isso revela nosso caráter autoritário. A pessoa
não sabe o que foi, não conhece o que foi, lê uma notícia dos colunistas e dos articuladores
de direita e acha que aquilo é a verdade.
Enfim, isso revela nossa característica. O sujeito, por qualquer coisa,
diz que era melhor o período. Isso oscila entre alienação, casos psiquiátricos
e ódio.