No Brasil, os hospitais universitários federais (HUFs) têm por finalidade exercer o ensino, a pesquisa e a extensão, por meio da assistência à saúde. São responsáveis por grande parte das pesquisas clínicas na área biomédica e pela formação de um expressivo número de profissionais de saúde, em nível de graduação e pós-graduação. São instituições cuja gestão está subordinada à Universidade Federal da qual corresponde, ao Ministério da Educação (MEC) por sua frente de ensino, e ao Ministério da Saúde (MS) pela vinculação ao sistema de saúde pública.
O Brasil possui espalhado em seu território o total de 46 HUFs, os quais agregam as políticas de educação e saúde. Em linhas gerais, o MEC é responsável pela despesa de pessoal dessas instituições, enquanto ao MS cabe os valores repassados mediante pactuação de metas (quantitativas e qualitativas) com o governo federal, estadual e municipal. Ainda que a gestão dos HUFs seja federal eles se inserem no sistema de saúde do estado de referência, através da pactuação de metas de prestação de serviços – não sem considerar a sua função primária de formação e pesquisa, o que os torna duplamente complexos.
Atualmente, os HUFs apresentam quadros de servidores insuficientes, instalações físicas deficientes e subutilização da capacidade instalada para alta complexidade, reduzindo assim a oferta de serviços à comunidade. Essa conjuntura tem implicado fechamento de leitos e serviços, bem como em contratações de mão de obra terceirizada (situação considerada ilegal pelo Tribunal de Contas da União).
Os últimos 20 anos têm sido marcados, no Brasil, por uma série de mudanças na orientação de diversas políticas de Estado que podem ser chamadas de políticas de ajuste neoliberal ou reformas estruturais neoliberais, cujos núcleos comuns são a adequação da institucionalidade estatal às necessidades do capital.
Dentro de uma conjuntura de restrição crônica ao financiamento dos direitos sociais existe uma série de propostas de mudança nos modelos de gestão dos serviços públicos, de forma a, supostamente, poder ampliá-los. No caso da saúde, há diversas propostas em execução ou debate: das mais precoces Organizações Sociais (OSs), passando pelas Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs), pelas Parcerias Público-Privadas (PPPs) e pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A., todas são propostas de modelos administrativos que alegam dar conta dos impasses na prestação de serviços de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Temos que avaliar com cautela esse novo modelo de gestão.
Começamos nossa contrariedade a EBSERH a partir do entendimento de que a assistência à saúde é serviço essencial e assim sendo deve ser gerida e prestada a sociedade pelo Estado. Defendemos um Sistema Único de Saúde que seja Estatal, público, gratuito e de qualidade, seguindo os ideais do movimento sanitarista que lutou por esta construção e que hoje percebe um hiato entre as proposições democráticas radicais do movimento original e o caráter restrito da democracia brasileira.
Um questionamento que podemos e devemos levantar é de como garantir integralidade, equidade, universalidade, descentralização e participação social, princípios do SUS, se a EBSERH pode estabelecer metas a serem cumpridas e, além disso, não segue o Conselho Nacional de Saúde no que se refere ao controle social?
Atualmente o financiamento dos HUFs se dá por meio da União, do MEC e de convênios com o SUS. A EBSERH mantêm essas fontes, acrescidas da incorporação de qualquer espécie de bens e direitos suscetíveis de avaliação em dinheiro – por exemplo, venda de cursos, aluguel de instalações como enfermarias para escolas médicas e de enfermagem privadas. Muda aqui a lógica da alocação de recursos, pois as necessidades do mercado definem os serviços oferecidos pela empresa e não qualquer lógica de necessidades de saúde, de formação de profissionais de saúde e de pesquisa de acordo com prioridades políticas nacionais. Relembrando que é vedado a EBSERH cobrar atendimento.
Como empresa pública de direito privado, a EBSERH pode, sim, acumular lucro. Mesmo quando voltados à execução de serviços públicos, as empresas públicas admitem lucro, embora não seja esse o seu objetivo principal. Outro fator que merece atenção é a dispensa legal de licitação para a EBSERH ser contratada pelo SUS e pelas instituições de ensino, bem como para fazer compras e contratação de serviços. Dispensa de licitação traz debates sobre as possibilidades de favorecimento, e quebra com o pilar da transparência.
A autonomia universitária é seriamente afrontada neste novo modelo. Como poderemos garantir a autonomia universitária em longo prazo se as metas do hospital serão definidas pela EBSERH, levando em consideração que a EBSERH terá seu quadro profissional progressivamente substituído por empregados da empresa? Além disso, a EBSERH não tem mecanismos democráticos de gestão, eleição de gestores, ou conselhos deliberativos paritários. Com este cenário como garantir a manutenção da finalidade do hospital de exercer o ensino, a pesquisa e a extensão?
A autonomia universitária neste modelo se restringe à possibilidade que os conselhos universitários das IFES tem de dizer sim ou não à EBSERH. Após dizer sim, o HUF deixa de estar subordinado ao órgão máximo das universidades que são os seus conselhos universitários. A política passa a ser definida de cima para baixo, numa gestão centralizada da empresa que tem suas decisões tomadas por um seleto grupo de nove conselheiros.
O Conselho consultivo, que se propõe a ser uma forma fantasiosa de controle social em nada segue a Resolução 33/92 do CNS, onde a composição do controle social no conselho de saúde, que tem caráter deliberativo deve ser 50% de usuários, 25% de trabalhadores de saúde e 25% de prestadores de serviços (público e privado). Além dos conselhos da EBSERH não serem paritários, há ainda o impedimento para que os representantes dos trabalhadores participem e opinem sobre as questões trabalhistas, como salário e plano de carreiras.
Do viés da luta dos trabalhadores acreditamos ser um retrocesso para os trabalhadores públicos a mudança do vínculo de contratação de servidores do RJU para a CLT. Entendemos como precarização do trabalho. Um trabalhador do serviço público, estatutário, quando passa a ser contratado pela CLT por outro ente que não a administração pública, está mais precarizado. Sob o ponto de vista do trabalho, o vínculo estatutário é, no geral, melhor, pois oferece estabilidade e segurança para o servidor poder dedicar-se à carreira, bem como, em alguns casos, certos direitos como incentivos à qualificação, plano de carreiras, entre outros.
Pela disposição da Lei n. 12.550/2011 os servidores públicos vinculados ao hospital universitário poderão, sim, ser cedidos à EBSERH. A lei não garante de forma categórica a referida cessão, abrindo brechas a outras possibilidades que não estão relacionadas taxativamente. Na hipótese de haver cessão, isso significa que o vínculo funcional do servidor público se mantém com o ente público federal e é mantida também a vinculação ao regime jurídico estatutário, com suas decorrências.
O artigo 7º da Lei n. 12.550/2011 prevê que os servidores efetivos da instituição de ensino poderão ser cedidos à EBSERH, garantidas as vantagens do órgão de origem. O salário dos servidores efetivos não será, portanto, alterado, e continuarão sendo pagos pelo MEC. Cabe destacar que, atualmente, não há nada pactuado sobre isso e, portanto, não temos garantia se essa transição acontecerá. Com o tempo os servidores RJU que forem se aposentando ou se exonerando serão substituídos pelos empregados da EBSERH contratados via CLT. O regime de pessoal da EBSERH é de emprego público. Também não há nenhuma garantia de paridade remuneratória entre os servidores efetivos cedidos e os empregados da EBSERH. Isto quer dizer que será possível a convivência de trabalhadores com variados tipos de contratação e salários em um mesmo hospital, o que implica em fragilização das forças na luta de classes.
A lei federal é omissa quanto à cessão dos trabalhadores terceirizados (contratos temporários) que atuam na entidade absorvida pela EBSERH. Não há, portanto, garantia de manutenção ou renovação de seus contratos, o que de regra é próprio da precariedade jurídica desses instrumentos. Mas há previsão de contratos temporários para garantir a execução dos serviços enquanto não for realizado concurso para empregados públicos da EBSERH. Ou seja, podem conviver as três formas de contratação num primeiro momento. Por exemplo, poderá haver auxiliares de enfermagem estatutários, fundacionais e contratados via EBSERH realizando as mesmas funções e recebendo diferentes remunerações. Mas a proposta é que essa convivência seja temporária, extinguindo-se os contratos temporários com a realização do concurso de empregados públicos e com a gradativa redução dos quadros estatutários, por aposentadoria ou outros fatores. Isto porque não haverá a renovação desses quadros.
Em especial esta última afirmação, sobre o caráter público da empresa e dos serviços prestados e a alteração do regime de contratação, levou a Procuradoria Geral da República a entrar no STF com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4895/12. O julgamento dessa ADI no momento está parado no STF.
Precisamos unificar a comunidade acadêmica, e somar forças com a sociedade em torno da defesa do HC-UFPR. Este debate volta para a pauta, se é que algum dia saiu, porém hoje muito mais acirrado que em 2012. Não há mais consenso sobre a negativa. A pressão do Governo Federal sobre a reitoria não pode ser maior do que a pressão do movimento social organizado. Seguiremos defendendo os valores e o modelo de saúde pública que foi construído por nossa militância durante a reforma sanitária, que teve como marco a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. O sistema de saúde é único e o público não pode ser complementar.
Por um HC 100% público, estatal, gratuito e qualidade, dizemos não à EBSERH!
Daniel Mittelbach
Secretário de Comunicação da CUT-PR
Membro do Conselho Universitário da UFPR