Moradia e especulação imobiliária oficial

Curitiba é uma cidade multicultural. Para cá vieram pessoas de
todos os cantos do Brasil e do mundo. Sempre foi, portanto, uma cidade
acolhedora da diversidade e, ao mesmo tempo, palco das tensões características
dos processos migratórios. A questão da moradia, sobretudo nas décadas de 1970
a 1990, foi sempre um dos principais focos de conflito em nossa cidade,
proveniente da busca de milhares de famílias por um punhado de terra para
construir seu lar.

Muitas dessas famílias vieram para Curitiba a partir de 1975.
Naquele ano, uma geada fortíssima – a geada negra – aniquilou toda a produção
de café do Paraná, plantados em um milhão de hectares de terra. Os pés de café
morreram e foram, em sua maioria, cortados. Era a principal cultura agrícola do
Estado e a economia paranaense dependia da venda do produto. Sem café, milhares
de trabalhadores rurais foram obrigados a abandonar o campo e tentam uma chance
na capital.

Essa foi a trajetória do casal José Vilson Correa de Moura e
Jorgina dos Santos de Moura. Nascidos em Palmeira das Missões (RS), partiram
para o Paraná no início dos anos 1970, para a cidade de Clevelândia, e vieram
para Curitiba, em 1979, com uma filha pequena, depois de perderem todas as
opções de trabalho com o declínio do café no interior.

Assim que chegaram à capital, foram morar na casa de um irmão de
José. Após alguns meses, com José empregado como coveiro no cemitério Parque
Iguaçu, conseguiram alugar uma casa. De aluguel em aluguel, sem dinheiro, em
uma das suas mudanças, o José decidiu ir falar com o então prefeito Jaime
Lerner para pedir um auxílio da prefeitura. Nesse dia, José conheceu Jairo
Graminho, um homem simples e que discutia com Lerner sem medo, de igual para
igual.

Graminho chamou a atenção de José. Ele falava em direito à
moradia digna a todos, em luta contra a carestia e liderava ocupações urbanas
do povo trabalhador pobre. José passou a se integrar nas lutas do Jairo
Graminho e, juntos, organizaram ocupações gigantescas, com milhares de
famílias. O senhor José aprendeu na luta que o território urbano em Curitiba
tinha poucos proprietários, a maioria grileiros que receberam as áreas em
arranjos das elites locais e que dividir essas terras é uma questão de justiça
social.

Eles conheciam os terrenos, demarcavam as áreas e planejavam as
ações. Depois disso, encaminhavam o povo, que lhes confiava a direção das suas
lutas. O José passou a ser chamado pela cúpula da COHAB do Lerner de “Zé Encrenqueiro”,
porque, assim como o senhor Jairo Graminho ou o “Zé Maracutaia”, outra
liderança da época, ele não arredava um só milímetro na defesa do povo.

As prefeituras não conseguiram conter as dezenas de ocupações
que surgiam naquela época. O Lerner tentava agir com violência e provocar
despejos assim que o povo se estabelecia, mas as pessoas ocupavam em outro
canto. Era um fenômeno profundo na sociedade.

Para dar apoio ao movimento, uma figura militante foi marcante:
o Dr. Edésio Passos. Ele orientava, encorajava, marchava junto e dava todo
suporte para as lideranças, seja material (barracas, comida, vestuário) como
jurídica.

A luta trouxe grandes resultados: obrigou prefeituras
extremamente conservadoras e violentas a acelerarem a adoção de projetos habitacionais
na cidade, em certos momentos até mesmo com realocação em áreas já urbanizadas
(com escola e ônibus) e o pagamento das casas com trabalho, o que garantia as
condições de pagamento às famílias; derrubou a exigência de ter que receber
cinco salários para entrar na fila da COHAB; essas lideranças fundaram a União
Geral das Associações de Moradores e Amigos dos Bairros de Curitiba, entidade
na qual se discutia além da questão da moradia, o direito ao trabalho,
educação, saúde e transporte, contribuindo para a urbanização de Curitiba e
melhora de vida de milhares de pessoas.

Até hoje, passados mais de trinta anos da maioria das grandes
ocupações urbanas de Curitiba, a situação dessas moradias ainda não está
resolvida. Mais de 60 mil terrenos continuam sem regularização, uma em cada dez
casas de nossa cidade, pelo menos.

O prefeito Gustavo Fruet, mesmo com toda propaganda que fez em
torno da “regularização” de uma das principais ocupações da cidade, o Xapinhal,
apenas instituiu a uma parte da população a compra dos terrenos por um prazo de
15 anos. Ainda assim fez a um alto custo no boleto bancário, mantendo a COHAB
no seu papel histórico de “imobiliária oficial” para vender loteamento aos mais
pobres.

Há muito para avançar no reconhecimento da propriedade das áreas
há muitos anos ocupadas por seus moradores e outras novas lutas ocorrendo por
avanços no direito à moradia. O “Zé Encrenqueiro”, o “Zé Maracutaia”, o Jairo
Graminho, o Dr. Edésio Passos e tantas outras lideranças nos deixaram um legado
inestimável para a cidade, uma marca que não se apaga: a de que todos, mesmo
aqueles que as nossas elites sempre buscaram hostilizar, tem direito a viver em
Curitiba e que somente a luta garante verdadeiros avanços sociais.