REPORTAGEM ESPECIAL – Cinco meses sem água

A comunidade da Ilha das Peças denuncia a falta de água potável
desde outubro de 2016, há cinco meses, depois de uma enchente que prejudicou a
tubulação da rede de água. O problema é, em si, absurdo. Só que não é o único
na ilha, que fica no município de Guaraqueçaba, encravada entre as populares
ilhas do Mel e ilha de Superagui.

Pouco conhecida do público, mas rica de recursos naturais e
História. Como todo o paraíso hoje em dia, contradições não faltam. A ausência
de saneamento básico e coleta seletiva de lixo capenga assombra esse recanto de
fauna e flora. Na região, ao todo doze comunidades habitam as ilhas e dez ao
longo da estrada para Guaraqueçaba, abrigando povos indígenas e os chamados
caiçaras, moradores locais, descendentes da miscigenação deíndios,
negros e invasores europeus.

A baía na frente da ilha acolhe um dos principais berçários brasileiros
de botos (Sotalia fluviatilis), além
da raia manta. Embora até moradores mais velhos admitam a dificuldade e sorte
quando conseguem vê-la.

A característica da Ilha das Peças difere de Superagui pelo
fato de não ter grande concentração de turismo. Porém, a ilha se divide numa
fronteira palpável de exclusão, entre cerca de 300 moradores instalados na
parte de trás, e os chamados veranistas, que compraram uma faixa de areia à
beira-mar, construindo casas, trazendo lanchas e helicópteros para romper o
silêncio da pesca artesanal.

O clima é de forte calor e também de desânimo. “A pesca
acabou”, é um dos comentários correntes. “Aqui estamos ilhados” é outra sentença
comum. “Meu filho fica aqui até os 16 anos”. Sobre falta de água nas duchas e
torneiras, a revolta é maior: “Em Guaraqueçaba brota água do chão e a gente
padece de água”, critica Gilson Constantino, mestre de obras e morador local.

Prefeitura de
Guaraqueçaba é responsável pelo reparo da tubulação

Questionada pela reportagem, a Sanepar afirma que forneceu tubulação
nova para refazer a conexão de água entre a ilha, a partir da cidade de
Guaraqueçaba, numa nascente distante cerca de 17 km da comunidade. Para os
moradores, foi levada água em situação emergencial. As informações foram
confirmadas pelo Ministério Público estadual de Antonina.

Depois de dois dias de trabalho voluntário dos moradores,
encarregados pela prefeitura, o problema ainda não foi resolvido. O trabalho se
deu em condições dignas de romance de Joseph Conrad: mata fechada, trabalhadores
sujeitos ao risco de serpentes e outros perigos. A questão, agora, é o novo
material da adutora permanecer parado, sujeito à corrosão na floresta.

Há um acordo assinado entre Ministério Público estadual de
Antonina, prefeitura de Guaraqueçaba e Sanepar para resolver o impasse. A
manutenção da rede sempre foi feita pela associação de moradores e o sistema
foi degradando, devido a erros – o que é admitido pelos próprios membros da
associação local.

À reportagem, o prefeito Abelardo Sarubi afirma que a reclamação
dos moradores se deve a “que eles não têm culhão roxo para subir o morro e
reclamam que tem cobras. Não estão participando. Não confirmo, repudio e quem
está denunciando não quer ajudar”, afirma.

Embora relutante, o prefeito ao final da entrevista admitiu
que a comunidade está há três meses sem receber água encanada. Porém, garante
que as obras foram retomadas. Até o fechamento da edição, a reportagem não
recebeu, conforme o combinado, fotos garantindo que as obras teriam sido
retomadas.

Lençol freático está
comprometido

Desde a enchente de outubro de 2016 a comunidade não conta
com recurso hídrico potável, a não ser o recolhido da chuva ou de poço
artesiano. O problema é que o lençol freático está comprometido devido à falta
de saneamento básico na comunidade, situação comum nas ilhas. “Água para nós é
vida, água salgada do poço destrói a máquina de lavar”, critica um morador
local.

Apesar de desenvolvido na escola pública local, nunca foi implantado
um projeto de saneamento ecológico para as poucas casas locais. Fato estranho. A
ilha tem dois vereadores representantes na câmara municipal de Guaraqueçaba. Um
deles, Teodoro Dias (PDT), eleito com 208 votos, parte para seu terceiro
mandato. Numa situação digna de um dos romances de terras de coronéis escritos
por Jorge Amado, os barcos de transporte e a venda de parte da água pertencem ao
vereador local.

“Peças” de
escravidão

O nome Ilha das Peças se deve ao tráfico de escravos. No
período quando o comércio era proibido, os navios não podiam chegar até
Paranaguá e expor os escravos. Então, as ‘peças’, como os escravos eram
chamados, eram deixadas nessa ilha na entrada da Baía de Paranaguá. Ou mesmo
para serem tratados de algum ferimento.

Renato Pereira de Siqueira narra que sistematizou cerca de
300 lendas e 1700 superstições recolhidas na região. São histórias tais como o
chamado Pai do Mato e Velha do Mangue que protegem o ambiente da floresta. São
histórias necessárias para a relação entre comunidade e seus recursos, educação
das crianças e relação com a natureza.

Cooperativa de
mulheres é um projeto social para os pescadores

“Precisamos de projetos elaborados e conversar com alguns
turistas”, afirma Hilda Xavier Carvalho, presidenta da associação de moradores
da Ilha das Peças e também da cooperativa de mulheres. Há dez anos o espaço é
exemplo de auto-organização das mulheres
trabalhadoras.

Hilda ressalta o papel social da cooperativa, que não serve
apenas ao comércio. O segredo está no chamado caderno de fiado do pescador, um
alívio nos períodos de redes vazias. No restaurante, doze mulheres se revezam
em dois turnos, no trabalho que vai das 6h30 até às 21h30, “Tivemos que nos
impor no começo, muitas de nós o marido não deixava trabalhar”, reconhece.

Formato de Parque
Nacional recebe críticas de caiçaras

Pescadores e moradores
reclamam de falta de condições e esgotamento da pesca. Presidente do parque
rebate as críticas

As dificuldades dos pescadores artesanais locais são
visíveis. “Seu Eliseo” é um dos mais críticos. De pescador, hoje seu barco
mantém-se na ativa, pintado e bem cuidado, mas apenas em passeios e outros
serviços.

O morador local e educador Renato Pereira de Siqueira critica
modelo de Parque Nacional que predomina na região da ilha de Superagui. Isso
porque, de acordo com ele, o modelo não comporta o modo de vida da comunidade
tradicional – que extrai o necessário da floresta, mas justamente por essa
razão a preserva.

O modelo de Parque Nacional, gerido pela autarquia
federalInstituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), na avaliação de Siqueira,
aliena da comunidade o dever de preservar a fauna e a flora. No caso do Parque Nacional
de Superagui, criado em 1989, aglutina cinco comunidades que vivem da pesca
artesanal. Fora do parque, há também outras comunidades.

“O Parque Nacional não tem fiscalização e manejo”, critica,
afirmando que o seu formato desorganiza e criminaliza as comunidades. Atrás da
vila, por exemplo, já não há espaço para a construção de casas para os mais
jovens.

Outro lado

O presidente do Parque Nacional, Marcelo Brizolin, cuja sede
fica na ilha de Superagui e conta com apenas três funcionários, defende que as
comunidades tradicionais podem extrair madeira para uso de suas práticas, fabrico
de canoas ou algum artefato para a prática da pesca.

Há reclamações de que a polícia ambiental é severa com os
moradores, com relatos fortes inclusive de iminência de confrontos entre
comunidades originárias e representantes do Estado. Mas há também a análise de
que, na realidade, a fiscalização é nenhuma. Na avaliação de Brizolin, “Até nos
acusam de sermos controladores demais. Atuamos muito sob denúncia. Principalmente
no caso de veranistas usando madeira para sua casa”.

Apartheid

Uma das imagens mais impressionantes é o muro de exclusão, um
apartheid silencioso, entre caiçaras e os ricaços instalados em frente ao mar. O
problema – na visão do presidente do parque nacional – é a permissão legal de quem
tem cadastro vender para alguém de fora. É preciso um novo modelo de
ordenamento e um termo de acordo de uso sustentável:

“Onde poderíamos colocar uma norma, se a associação de
moradores tiver acordo com isso. Houve reuniões com o Ministério Público, que originaram
duas recomendações (para que não se venda os lotes). Estamos pedindo para a
comunidade que aceite para não vender os lotes”, afirma.

O relato de moradores de fato reconhece que a chegada de
turistas aconteceu a partir da venda de terrenos, de forma que os pescadores
passavam a viver nos lotes mais ao fundo da entrada da ilha. Com pouquíssimos
recursos e condições, como recusar a força da entrada do dinheiro?

Polêmica na prefeitura de Guaraqueçaba

Abelardo Sarubi (PTB) é prefeito de Guaraqueçaba em condição interina, depois de muita polêmica. Isso porque caso o presidente da câmara, vereador Julhardy Costa Arruda, ou dois terços dos vereadores, acatem solicitação de afastamento imediato do Prefeito devido à denúncias na Ação Civil de Improbidade Administrativa e de Dano ao Erário Processo n° 0000385-07.2014.8.16.0043, que apura possível enriquecimento ilícito.

Demandas para uma ilha melhor

– De acordo com Renato Siqueira, há reuniões entre ICMbio e Universidade Federal do Paraná (UFPR) para transformar a área em área livre de barcos de motor;



– Manejo sustentável e valorização das comunidades;



– Situação de saúde pública precária e com medicamentos parados na região. Falta de ambulancha e UTI móvel;



– O Posto de Saúde tem apenas uma funcionária;



– O colégio municipal marcado por acúmulo de funções e baixo número de professores.