A formação daquele que o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) intitulou “o Congresso mais conservador do período democrático”, somada à histórica sub-representação feminina na política, fez de 2015 um ano de retrocessos, mas também de intensificação da luta pela igualdade de gênero no Brasil. Enquanto no legislativo ganham força iniciativas contrárias aos direitos de mulheres, em especial negras, indígenas, camponesas, jovens e LBTs (lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais), nas ruas o movimento feminista é quem protagoniza o debate.
Tudo começou com a eleição, em fevereiro, de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a Presidência da Câmara. Membro da chamada bancada BBB (da Bíblia, do Boi e da Bala), ele deu a tônica de como seria sua gestão logo nos primeiros dias do mandato, ao anunciar que propostas relativas à descriminalização do aborto só seriam votadas por cima de seu cadáver. Desde então, desengavetou projetos de lei como o 7443/2006, que inclui o procedimento no rol de crimes hediondos, o 7382/2010, que penaliza a suposta discriminação contra heterossexuais, e o 1672/2011, instituindo o Dia do Orgulho Hétero. Todos são de sua própria autoria.
O ápice da “onda” ou “primavera lilás”, porém, veio oito meses depois, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) aprovou o PL 5069/2013, que entre outras medidas dificulta o já precário atendimento a vítimas de violência sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme o texto, subscrito também por outros 12 parlamentares, antes de receber medicação para prevenir uma possível gravidez ou a incidência de DSTs as pessoas precisarão se submeter ao exame de corpo de delito, na delegacia, de forma a comprovar que estão falando a verdade.
Cientes de que a imposição dessa via crucis não apenas complicaria o acesso ao aborto legal (em caso de estupro, anencefalia ou risco de vida materno), mas também desencorajaria a formalização de denúncias contra os agressores, milhares de brasileiras têm se unido em protestos por todo o País. Com o slogan “Pílula fica; Cunha sai”, elas pedem a renúncia do presidente da Casa e o fim dos retrocessos. Além de controlar a agenda de votações em Brasília, o chefe do parlamento enfrenta uma série de acusações relacionadas ao esquema de corrupção instaurado na Petrobras, entre elas a de manter quatro contas secretas na Suíça, identificadas pela Procuradoria Geral da República (PGR).
“É uma tristeza que nós tenhamos representantes desse quilate. É realmente um retrocesso o que eles (parlamentares) fazem e o que dizem. Já deveriam estar fora do poder por uma cassação de direitos e continuam. Espero que isso aconteça o mais breve possível”, afirmou a farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes, que batizou a Lei 11.340/2006, criando mecanismos para coibir a violência doméstica. Em maio de 1983, ela levou um tiro nas costas de seu então marido, Marco Antonio Heredia Viveros, enquanto dormia, ficando paraplégica. O ex-companheiro por duas vezes foi julgado e condenado, mas saiu em liberdade devido a recursos impetrados por seus advogados de defesa.
Zonas de exclusão
Para a antropóloga social Martha Ramírez-Gálvez, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), a composição do Congresso compromete hoje qualquer discussão relacionada a direitos civis no Brasil. “Essas pessoas (que lá estão) se atribuem (umas as outras) uma superioridade moral, criando zonas de exclusão para quem pensa diferente, quem tem uma ideia de esquerda ou quem não pertence ao mesmo hábito religioso. Colocam a mulher numa situação de receptáculo. Engravidou? É para isso mesmo que você está no mundo”, afirmou. Ela criticou o fato de questões como a liberdade sexual e reprodutiva serem utilizadas como “moeda de troca” na formação de alianças entre os diversos grupos políticos e na manutenção da governabilidade.
Conforme a presidenta da Central Única dos Trabalhadores do Paraná (CUT-PR), Regina Cruz, o povo brasileiro não merece essa composição da Câmara, nem tampouco se sente representado por ela. “A gente não vai se calar enquanto movimento, porque essa é uma pauta que não traz benefícios e que unifica as mulheres, independentemente de orientação sexual, estado civil ou área de atuação”, disse. A professora Eliana Maria dos Santos, secretária do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, tem a mesma opinião. “A nossa principal preocupação é em relação ao que será do futuro. Imagine se nas escolas não pudermos falar mais sobre gênero?!’”, indagou, em referência ainda ao PL 7180/2014, que busca acabar com a “doutrinação em sala de aula”.
Crise de representatividade
De acordo com a advogada Naiara Bittencourt, militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), o conservadorismo também acirra a crise de representatividade no parlamento. Embora o Brasil seja governado, desde 1º de janeiro de 2011, por Dilma Rousseff (PT), possui atualmente 12 senadoras (14,81%), contra 69 senadores. Já na Câmara, das 513 cadeiras, 51 são ocupadas por pessoas do sexo feminino, o que corresponde a 9,94%. “Quem vota e decide pelos direitos das mulheres? Homens, proprietários, brancos e religiosos”, pontuou.
Segundo ela, somente uma reforma política profunda no poder legislativo poderia alterar esse cenário, a começar pelo financiamento público de campanha e pela paridade de gênero nas eleições. “Os homens não querem perder espaços de poder na sociedade. Ao contrário: pretendem continuar controlando nossas vidas e nossos corpos, ainda mais os de quem ‘foge’ à heteronormatividade e aos modelos tradicionais, como lésbicas e negras”, as últimas vistas como “objetos sexualizados ou força de trabalho barata”.
O mesmo País que pode dificultar o atendimento de saúde às vítimas de violência sexual registrou, no ano passado, 47.646 estupros, o que significa, em média, um a cada 11 minutos. Os números do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em outubro de 2015, representam queda de quase 7% em relação a 2013, quando foram contabilizadas 51.090 situações.
Os próprios pesquisadores estimam, contudo, que possam ter ocorrido até 476 mil casos, uma vez que a subnotificação é recorrente. A projeção se baseia no levantamento ‘Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde’, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que aponta que apenas 10% dos crimes dessa natureza chegam ao conhecimento da polícia.
O Brasil também possui o quinto maior índice de feminicídios do mundo, conforme o Mapa da Violência, publicado em novembro pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais. Em 33 anos, mais de 106 mil mulheres foram assassinadas por aqui. As 4.762 mortes registradas em 2013, último ano analisado, representam uma média de 13 por dia e uma taxa de 4,8 para cada 100 mil habitantes. Chama a atenção o fato de que a incidência de óbitos de mulheres negras cresceu 54,2%, enquanto a de brancas caiu 9,8%.
De acordo com a bioquímica Maria da Penha, os dados são preocupantes “Não existe a política pública? Não tem onde ela (mulher) procurar ajuda? Ou (a política pública) não está sendo bem feita? Esta mulher denunciou e não foi protegida como deveria?”, questionou. Em Curitiba para a 1.ª Jornada Nacional Mulher Viver Sem Violência, a hoje ativista disse considerar o feminicídio muito mais grave do que um homicídio comum. “Os homens são assassinados por briga, na rua, e as mulheres dentro de casa, por quem deveria protegê-las”.
Serviço
Casos de agressão e de outras violações de direitos femininos podem ser denunciados diretamente nas delegacias ou por meio do Ligue 180. O serviço, mantido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), da Presidência da República, é gratuito, funciona 24 horas por dia e preserva o anonimato.