Se a carne mais barata do mercado é a carne negra, como cantou Elza Soares, qual é o valor da carne negra feminina? A violência sofrida nos corpos e mentes das mulheres pretas e pardas causa danos muitas vezes difíceis de curar, passando pela insegurança de se autodeclararem negras, seja pelo medo do racismo ou pela própria falta de autoestima com o que enxergam no espelho — sentimento que também é fruto do racismo vivenciado.
Em 2020 foi registrado pela primeira vez em uma eleição municipal brasileira que a proporção de candidatos negros é superior a de brancos. No ano passado, os dados do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais mostrou que a presença de estudantes negros no ensino superior também cresce cada vez. O último Censo (2022) brasileiro revelou que o número de pessoas que se autodeclaram pretos ou pardos também aumentou, formando 55,4% da população. Isso quer dizer que tem mais pessoas se autodeclarando negras. No entanto, quando aproximamos a lupa para os dados no serviço público de Curitiba, a realidade vai na contramão, pois ainda é baixa a proporção entre servidores públicos que se autodeclaram negros e não negros — mesmo Curitiba sendo a capital mais negra do sul do país.
Esse número é ainda menor se fizermos o recorte de gênero, pois as mulheres negras compõem apenas 14,75 % do total dos servidores públicos de Curitiba. Ainda vemos também poucas mulheres negras ocupando cargos de chefia. O questionamento que fica é: de fato, ainda há poucas pretas e pardas no serviço municipal ou as mulheres negras não se autodeclaram? O protagonismo dessas mulheres ainda é uma busca, elas passaram por um silenciamento estrutural e geracional, que tem como consequência a dificuldade de se reconhecerem como negras, seja no serviço público ou na sociedade em geral.
A falta de repertório sobre a cultura negra brasileira, de fatos históricos sobre o povo negro e de referenciais negros na mídia podem ser alguns dos fatores que afetem a identificação dessas mulheres como negras. Quando você nasce com uma pele negra, sua subjetividade sobre você mesmo pode ser moldada através do olhar do outro, o que conflita com olhar que tem sobre você mesma. É um processo que acontece de fora para dentro.
Não podemos romantizar esse processo de auto identificação, pois, muitas vezes, ele acontece de maneira dolorosa e violenta. “Foi somente adulta, perto dos 20 anos, que me descobri como uma mulher negra. Mesmo com traços negros, como nariz largo e cabelo crespo, minha pele é mais clara. Não me entendia como mulher negra até o outro me apontar isso. Depois que me racializei, comecei a entender porque passei por certos momentos violentos durante a infância e adolescência”, conta uma servidora que prefere não se identificar. É por isso que muitas mulheres negras vivem em um estado de recusa à sua própria raça.
O mito da democracia racial
O Brasil passou por um processo de miscigenação intenso — também um resultado da colonização violenta que ocorreu em nosso país. Porém, autoridades brasileiras, pós-abolição da escravatura, buscaram amenizar os efeitos sob o povo negro escravizado. O escritor Gilberto Freyre, em seu livro Casa-Grande e Senzala, elaborou a ideia da “democracia racial”, em que criou a ilusão de que a miscigenação brasileira aconteceu naturalmente e que, ao contrário dos Estados Unidos, onde houve segregação racial, não somos um país racista.
Sueli Carneiro, filósofa e ativista do Movimento Negro, cunhou o termo epistemicídio, onde aponta que esse mito da suposta democracia racial é perverso e gerou uma anulação do negro no Brasil, em que negros e negras foram colocados em um papel de subalternidade, bem como o apagamento de tudo o que envolve os saberes da população negra. Isso também gera dificuldades no processo de identificação.
Por isso, muitas vezes, como estratégia de sobrevivência mulheres negras optam por se adaptar ao meio onde vivem, buscando maior “tolerância” à sua raça. Alisar os cabelos, falar mais baixo, maquiagem para afinar o nariz, entre outras tentativas de se camuflarem e não serem vistas como intrusas naquele espaço.
Colorismo
Esse nível de “tolerância” também muda de acordo com o fenótipo (características físicas) dessa mulher. Negras de pele clara têm maior passabilidade do que negras retintas. Isto é, dependendo da pigmentação da pele, mulheres negras podem ser mais ou menos aceitas pela branquitude, em diferentes áreas da vida, seja profissional — facilitando ou dificultando o ingresso em determinada carreira – seja em relações pessoais.
O conceito de colorismo trabalha esses aspectos sobre como a quantidade de melanina presente na pele de um um indivíduo influencia a maneira de como ele e as demais pessoas se relacionam.
Alessandra Devulsky, escritora do livro Colorismo, afirma que “os reflexos racistas e as práticas oriundas do colorismo foram incorporadas tão bem na construção dos nossos apreços e gostos, e não poderíam deixar de estar presentes também no seio da comunidade negra.” Alessandra diz também que a mulher preta precisa sair de um lugar ainda mais invisibilizado que as negras claras para se autoafirmar como produtora de conhecimento, digna de respeito, acolhimento e afeto.
Para o SISMUC, é fundamental a criação de políticas públicas de implementação de ações afirmativas, fortalecendo a forma como as mulheres negras se percebem, possibilitando o ingresso de mais alunas negras nas universidades, de mais mulheres negras no serviço público municipal. Também precisamos discutir mais sobre a racialização nos nossos espaços de trabalho, esse tema não deve ser esquecido e, sim, fomentado para que cada vez mais meninas e mulheres negras sintam orgulho de se auto afirmarem.