O busto e as cabeças arrastadas pela cidade, mesmo 50 anos depois

Os 50 anos do golpe civil militar no Brasil e as atividades chamadas pelas entidades do movimento social no sentido de construir um calendário consistente de em fazer as descomemorações do golpe. Foram importantes e ainda acontecem pelo mês de abril, pela cidade, pelo estado e pelo Brasil a fora!


Inclusive com atividades e ações que causaram polêmicas, como o caso da derrubada do busto do ex-ministro da educação e ex-reitor a da Universidade Federal do Paraná por duas vezes Flávio Suplicy de Lacerda.


Essa é a característica do regime democrático é que ele é mais demorado para se consolidar, por que precisa levar em conta as vontades dos envolvidos na construção da democracia. Diferente dos regimes autoritários que tomam ações imediatas, não se preocupando com as consequências que elas trazem e que geralmente são medidas tomadas unilateralmente.


Assim foi por todo regime civil militar de exceção que estabeleceu se no Brasil por 21 longos anos. Sob a desculpa que seria uma intervenção cirúrgica apenas para recolocar “a casa em ordem”, mas que ordem? Pois as coisas estavam em ordem no que se diz respeito aos avanços da democracia e da participação popular, caminhávamos a passos largos para as reformas de base. O Governo Jango fazia um governo voltado para o povo, considerado popular por muitos e populista por outros. Mas o fato é que estava dando voz para aqueles que nunca a tiveram. E isso se constituía numa afronta para os aliados de primeira hora do golpe, que achavam que colocar ordem significava evitar que a voz fosse estendida para além das elites tradicionais que dominavam o historicamente o poder no país. Apesar dos contratempos governamentais que enfrentaram, com a renúncia de Jânio Quadros e que potencializou João Goulart. As tentativas desses setores desalojados do poder, foram uma atrás da outra sem sucesso no intento de barrar a possibilidade de que ele, João Goulart, governasse, com a visão de transformação social.


Não foram poucas as tentativas de impedir que João Goulart governasse, como já vimos, primeiro pela manobra do parlamentarismo, segundo pela tentativa de esvaziar o governo Jango e a terceira e última pelo proposta de golpe cirúrgico de curta duração para tentar reestabelecer a “ordem”. Em todas essas tentativas a força política de Jango era inabalável. O caminho era mesmo a última hipótese, ou seja, o golpe e a devolução do poder político aos “herdeiros” desgarrados que estavam temporariamente fora do governo, assim foi. O golpe foi dado em 1º de abril de 1964, mas a promessa de intervenção curta e rápida não se consolidou. Então acompanhamos por 21 longos anos o que foi a resistência para podermos voltar ao regime democrático e participativo.


Com a Instalação do regime civil militar, muitas coisas mudaram no país e em todas as suas instituições, outros personagens políticos, que não tinham importância ganharam importância, personagens políticos importantes ganharam a escuridão e o ostracismo. Mas o fato é que as coisas mudaram para todos os partidos políticos, as entidades estudantis, os governos Estaduais, os governos municipais e as entidades de representação políticas de todas as montas. E também é claro a Universidade sofreu transformações políticas e administrativas, que feriram de sangrar sua concepção inicial de universalidade, de acesso de todos.


Em todas as instâncias da sociedade estão ainda nos dias de hoje presentes os restos, os entulhos do regime autoritário de 1964 mesmo 50 anos depois. É só darmos uma olhada nas leis que vigoravam em diversas áreas sociais, veremos que todas ou pelos menos a grande maioria ainda nos dias de hoje são regidas pelo que se construiu 5 décadas atrás, e por que as essas leis retrogradas e atrasadas não mudam? Por que o sentimento de elite política excludente é ainda muito forte no Brasil, pois até um ato simbólico com a derrubada de um busto de uma “persona non grata” aos movimentos sociais e amantes da democracia causa polêmicas, mesmo tanto tempo depois.


O que representou a derrubada do Busto do ex-ministro Flávio Suplicy de Lacerda, há 50 anos e o que ele representa hoje? Em tese e reservadas as proporções políticas, representam a mesma coisa! O grau de conservadorismo que ainda está arraigado em nossa sociedade e em nossas instituições assusta. Pois não se entende como gesto simbólico o que houve, não compreende que a proposta da derrubada do busto é para que os personagens políticos, dos eventos políticos, tenham a dimensão histórica que de fato merecem ter, seja de grande ou pequena dimensão histórica.
E daí não podemos fugir de uma breve análise do que, e de quem foi Flávio Suplicy de Lacerda no contexto histórico analisado e o que ele representava, e ainda representa. Pois diferente do que se propaga por aí, ele não era e nunca foi um cidadão como tantos outros homens comuns que apoiaram o golpe civil militar de 1964.


Afinal, estamos falando de um personagem político que assumiu toda a gama da responsabilidade tocar a política desenvolvida no campo da educação dentro do regime civil militar que se iniciava no governo civil militar do General Humberto de Alencar Castelo Branco. Não, não era apenas mais um. Foi um dos mentores do processo de atrelamento político entre o Ministério da educação e cultura brasileiro – MEC e o United states agency for internacional – USAID, que visava a implantação do ensino pago no Brasil, que tinha a proposta de implementar alterações na educação brasileira para produzir meros reprodutores de movimentos repetitivos e apertadores de botão. A intenção era a implementação de escola basicamente tecnicista, sem formação de consciência crítica das pessoas. A grosso modo era uma proposta totalmente atrelada e dependente de tudo no que diz respeito educação na relação do Brasil com o Estados Unidos da América.


O ex-ministro e ex-reitor da UFPR, era o homem do regime civil militar no campo da educação que atuou de sobremaneira para oprimir a organização dos estudantes e de suas entidades e também dos professores na tentativa de resistir ao golpe civil militar instalado no Brasil, em abril de 1964. Como Reitor e como ministro da Educação serviu sempre ao propósito de justificar o golpe. Ação conscientemente e racional que lhe rendeu os loros históricos por parte dos defensores do regime autoritário e também lhe deu a pecha de homem de confiança do regime, por parte dos críticos da ditadura.


Portanto, quando nos mencionamos aqui os dois episódios de derrubada do busto do ex-ministro da ditadura e ex-reitor da federal falamos não do homem, ou na tentativa de desqualifica-lo perante a sociedade. Mas falamos do personagem que esse homem e suas circunstâncias, suas escolhas políticas suas ligações com o regime de exceção representaram.


Falamos de um personagem político que representou uma corrente de pensamento reacionária, retrograda e conservadora de um movimento político que tentou calar a voz da sociedade, dos partidos, dos sindicatos, das entidades do movimento estudantil, como a União Nacional dos Estudantes, a UNE e as uniões estaduais, a União Brasileira de estudantes secundaristas e os seus grêmios. Sob estapafúrdia e estúpida desculpa de medo da “ameaça comunista” se instalar no Brasil. Falácia, pois o que regia a tônica das intervenções militares e da instituição de ditaturas civis militares em toda América Latina e no Cone Sul foi a preservação da influência capitalista nas sociedades e nos mercados desses países.


Quando da primeira vez da derrubada do busto a sociedade e a comunidade acadêmica e estudantil buscava expressar a discordância com as políticas entreguistas desenvolvidas pelo então ministro e ex-reitor por duas vezes da UFPR. E o ato simbólico da derrubada do busto visava fazer esse diálogo com a sociedade paranaense e brasileira no sentido de resistir as reformas que se buscavam fazer na marra, na força da lei, de um congresso deslegitimado por sua parca representatividade. Foi isso que representou.


Passados 50 anos e acontece a segunda derrubada do busto representou a expressão de uma posição simbólica que esperávamos que não houvesse, como houve, diversas e foram a maioria de manifestações de apoio. Mas ainda assim, vimos que não era uma visão uníssona dentro dos movimentos sociais, o que causou nos muita estranheza, pois ressuscitou a voz de alguns setores emanados de um tipo de visão política que pensávamos estar sepultada dentro de nossas instituições democráticas, principalmente dentro da Universidade pública.


Os reflexos do acontecimento foram muito piores do que se esperava. Pois alguns setores da UFPR reagiram de forma adversa ao fato, tratando-o como vandalismo, como depredação de patrimônio histórico e cultural, analise que o movimento social organizado, o movimento sindical, o movimento estudantil, os partidos políticos progressistas, não concordam e não podem mesmo concordar. Pois esses setores não se preocupam com a analogia simbólica do personagem envolvido na história e de que papel ele cumpriu para a sustentação do regime de exceção que penalizou há todos na sociedade brasileira, homens, mulheres, jovens, crianças, partidos, entidades, associações, correntes de opinião e de pensamento.


O fato é que o busto foi derrubado e arrastado pelas ruas da cidades, mas o vulto histórico, conservador e reacionário, fez com que o busto ao cair fizesse também com que caíssem também outras pessoas. A reação foi a pior possível e fez eco em toda a comunidade acadêmica e também nos meios sociais. Fez se a magnifica pressão! E é contra ela que precisamos lutar e nos organizar, para que ela não alastre o viés conservador para outras áreas da sociedade. Pois não queremos e não vamos colocar ninguém nos braços de posições conservadoras, queremos sim é estabelecer o mais amplo debate social e acadêmico no processo para que possamos tirar lições de cidadania de fato histórico, que apontem para avanços nas relações sociais que estamos estabelecendo. Somente isso nos interessa, caminhar no sentido de limparmos de vez os entulhos antidemocráticos de dentro das instituições políticas e isso se fará somente com a busca pela reparação, pela verdade, memória e justiça, aos as pessoas, as instituições e aos personagens históricos, justiça em todos os sentidos.


Assim, esperamos que os desdobramentos do fato, como dissemos, tenham soluções pedagógicas para todos, no sentido de construir a solidariedade, a tolerância e a compreensão de que o fato não é, e não foi uma atitude de vandalismo das jovens e dos jovens estudantes de diversas agremiações políticas que se expressam na UFPR. Capitaneados pelo Levante Popular da Juventude, organização da juventude que tem acompanhado de perto o desenrolar das atividades e das repercussões política da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban, da Comissão Estadual da Verdade da OAB/Pr e também da Comissão da Verdade da Universidade Federal do Paraná.


E a segunda derruba do Busto, foi sim uma atitude simbólica de remover o conservadorismo, que mesmo velado ainda existe dentro da universidade. Pois afinal, na época em que vivemos, onde combatemos as perseguições de todos os tipos, os assédios morais que são praticados nas empresas, bancos e industrias, e também todo e qualquer tipo de violência, inclusive a violência de estado representada pelos seus aparelhos de repressão organizada, ou seja, suas polícias militarizadas.
O mundo mudou, transformou se, não podemos deixar que fantasmas e bustos do passado assustem nossa ainda jovem democracia. O Evento precisa ganhar os contornos de discussão política que merece, para que tenhamos aprendizado no evento, para que tiremos lições que nos serviam para cada vez mais consolidar nossa processo de democracia, que só será pleno com o inteiro resgate da memória, com o estabelecimento da justiça, com reparação histórica através da construção de uma verdade social, não uma verdade que tenha lado, uma verdade que pressione por um ou outro posicionamento político, mas uma verdade que repare, que coloque nos trilhos da democracia o trem da História. Por isso que não podemos permitir que junto com o simbolismo do busto arrastado pela segunda vez nas ruas de Curitiba, sejam arrastadas também cabeças de pessoas comprometidas com o pronto restabelecimento da verdade, da memória e da justiça.


Assim nos resta o dever cívico de bradar todos os dias alto e em bom tom, a frase que tem feito com que nos perfilemos ao lado daqueles que sofreram as graves violações aos direitos humanos e a dignidade: Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.