A Administração Pública é regida pela lei e pela Constituição Federal e, assim, deve respeitar alguns princípios, um deles é o da impessoalidade. Outra decorrência desses princípios é o regime disciplinar dos servidores e o processo administrativo disciplinar.
O que é o regime disciplinar da servidora e do servidor público?
O regime disciplinar é o conjunto de regras que estabelecem os deveres dos servidores públicos e as proibições a eles impostas em decorrência da função. Ele também prevê as sanções cabíveis para o descumprimento das regras que impõem deveres e proibições aos servidores. No entanto, em decorrência do princípio constitucional do devido processo legal, a aplicação destas penalidades só pode ocorrer após um processo específico previsto em lei.
No caso do Município de Curitiba, esse regime disciplinar está previsto principalmente no Estatuto do Servidor, a Lei 1656/58. Os deveres do servidor estão dispostos nos incisos do artigo 207 e as proibições nos artigos 208 e 209. Outros artigos dessa e de outras leis, assim como a Constituição Federal, podem estabelecer outras normas de conduta que se combinam a essas. O descumprimento de qualquer dever ou proibição é denominado de infração disciplinar.
A legislação de Curitiba prevê os instrumentos que devem ser utilizados para a apuração das infrações disciplinares e para a aplicação da penalidade para aquelas que restarem comprovadas.
A aplicação da penalidade deve ser antecedida do devido processo legal e não pode ser resultado do arbítrio de uma autoridade pública. Por isso, em todas as esferas da Administração Pública exige-se um processo administrativo prévio.
A legislação municipal prevê, além do processo administrativo disciplinar, um procedimento prévio, denominado de sindicância administrativa.
O que é uma sindicância e um processo administrativo disciplinar?
Esse procedimento de caráter investigativo, busca averiguar denúncias ou acusações recebidas acerca da eventual ocorrência de infração disciplinar. Ela não tem o objetivo de acusar algum servidor, mas de esclarecer os fatos para que se verifique se há indício da ocorrência de uma infração e do servidor ou servidora que a cometeu. Por isso é que, na sindicância, não é obrigatório o acompanhamento do servidor ou servidora por um advogado, pois não é o momento em que deve se defender de alguma acusação, por não ser acusado formalmente.
Ao final da sindicância, é elaborado um relatório acerca das apurações. Este relatório pode constatar o indício de ocorrência de infração disciplinar e de sua autoria e, diante disso, indicar a abertura de processo administrativo disciplinar em face do servidor. Se a indicação for acolhida pela Procuradoria Geral do Município (PGM), será aberto um processo administrativo disciplinar, um PAD.
No PAD, o servidor que supostamente tenha cometido a infração figura como indiciado, é formalmente acusado. Assim, neste momento, terá direito à ampla defesa, incluindo a possibilidade de defesa técnica por advogado, a oportunidade de participar, ainda que por seu advogado, de todos atos do processo e da produção de todas as provas, assim como de o próprio servidor requerer a produção de provas, com a indicação, por exemplo, de testemunhas.
Ao final do processo administrativo disciplinar também é elaborado um relatório conclusivo sobre a ocorrência da infração, que indicará, quando for o caso, a aplicação de uma penalidade. Da mesma forma, caberá à PGM acolher a indicação e determinar a aplicação da penalidade, que será, então, publicada em diário oficial e registrada na ficha funcional do servidor ou servidora penalizada.
Quais são as garantias que devem ser respeitadas durante a sindicância e o processo administrativo disciplinar?
É importante lembrar que o principal motivo de existirem sindicâncias e processos administrativos disciplinares é que os servidores sejam somente penalizados caso tenham efetivamente cometido uma infração e que não haja a aplicação de penalidades por outros motivos, como de mera inimizade ou desafeição política. Ou seja, assim como a estabilidade, além de ser um direito de cada servidor ou servidora pública, é uma garantia do próprio serviço público, que deve ser prestado por profissionais, servidores de carreira e que não sejam influenciados pelo medo de represália política indevida. E, as garantias mais relevantes nestes procedimentos têm a função de concretizar esses valores.
A primeira garantia é a de que não haverá “tribunal de exceção”, isto é, os servidores não serão investigados e julgados por um comitê constituído apenas para um caso específico. Para isto, o Município de Curitiba conta com comissões permanentes, que tem por objetivo apurar todas as supostas infrações, independente de quem esteja sendo acusado.
Existem duas comissões, sendo: Comissão de Processos de Sindicância (CPS) e Comissão de Processo Administrativo Disciplinar (CPAD); e também um Comitê Técnico de Estágio Probatório (CTEP). Todas as comissões permanentes são compostas por três membros servidores de carreira, sendo presididas cada uma por um de seus membros ocupantes do cargo de Procurador ou Procuradora do Município.
Os atos praticados pelas comissões nos processos são colegiados, ou seja, devem ser realizados e deliberados entre todos os membros. Não é adequado que qualquer procedimento ocorra sem a comissão completa, pois é exatamente o tipo de situação que dá espaço para arbitrariedades.
Quando convocados para depor junto a qualquer destas comissões, os servidores e servidoras municipais têm o dever de comparecer (presencial ou virtualmente, conforme o caso) para prestar depoimento. Apesar disso, não são obrigados a responder quaisquer perguntas que lhe causem constrangimento ou que não tenham relação direta com os fatos investigados.
As testemunhas e os indiciados têm o direito à preservação de sua “intimidade, vida privada, honra e imagem”, conforme o art. 5º, X, da Constituição Federal. Todas as pessoas que participam de qualquer forma dos processos administrativos disciplinares e das sindicâncias devem ter respeitados os seus direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal. Além dos expostos, temos, por exemplo, o direito ao tratamento isonômico, sem distinção de qualquer natureza, como de gênero, de raça, de classe social ou de categoria profissional.
O que é o Termo de Ajustamento Disciplinar (TAD)?
A legislação municipal, por meio do Decreto n.º 882/2017, prevê o instrumento do Termo de Ajustamento Disciplinar (TAD) como “solução alternativa à sindicância e ao processo administrativo disciplinar”. Ele é uma espécie de acordo que o servidor ou servidora faz com a Administração Municipal para não dar continuidade ao processo disciplinar e, assim, evitar a aplicação de penalidade. Ao assinar, o servidor se compromete a não cometer nenhuma infração no período de vigência do termo, que terá o prazo de 6, 12 ou 24 meses conforme o tipo de infração que consta no termo de indiciamento.
O TAD não é uma penalidade e, diferente delas, não gera efeito funcional, não impede o desenvolvimento na carreira, não é publicado em diário oficial e só constará da ficha funcional durante o período de vigência dele.
Legislação municipal que trata do regime disciplinar em Curitiba
Após esclarecido do que se trata o Processo Disciplinar e observando-se que ele deve ser regido pelas leis e pela Constituição Federal, é importante fazermos alguns apontamentos sobre a legislação municipal que trata do tema em Curitiba.
A principal lei que trata do regime disciplinar dos servidores e das servidoras municipais de Curitiba é o Estatuto do Servidor, a Lei n.º 1656/58. Os principais dispositivos da lei a respeito são os artigos 193 a 261. A criação de uma comissão permanente para a condução e julgamento destes processos foi inserida na lei em 1983, por meio da Lei municipal n.º 6437/83.O funcionamento delas e a regulamentação das normas processuais se deu em 1997 por meio do Decreto Municipal n.º 765/97. A maioria dessas leis são de períodos anteriores à Constituição Federal de 1988, considerada a Constituição da redemocratização do Brasil. Assim, esse elemento histórico já justificaria a necessidade de se reavaliar seu conteúdo e questionar acerca da sua compatibilidade com a Carta Magna do país.
Quanto ao conteúdo, há dispositivos inconstitucionais nessas leis, mesmo aqueles surgidos após a Constituição de 1988, como é o caso do art. 31 do Decreto 765/97, que prevê a possibilidade de aplicação de penalidade sem processo prévio e do processo sumário por força de “verdade sabida”, previsto a partir do art. 4º do mesmo decreto, o qual permite a aplicação de penalidade sem o direito à ampla defesa do acusado.
A legislação é vaga em diversos pontos. Um deles, que já é questionado pela literatura jurídica há algum tempo, é a questão dos chamados “tipos abertos”. A lei que prevê penalidade para infrações disciplinares, para atender ao espírito democrático e de respeito às garantias individuais, deve ser explícita e detalhada ao estabelecer quais são as condutas que se enquadram no tipo de infração exposta e como deve ser dosada a penalidade em cada caso. Assim como acontece no direito penal, cuja legislação prevê exatamente o rol de condutas consideradas crimes e a pena mínima e máxima cabível.
No caso da legislação municipal, a descrição das infrações é bastante ampla e genérica, o que permite, em tese, o enquadramento de uma infinidade de condutas numa mesma descrição abstrata. Ainda, os mesmos dispositivos não estabelecem a pena mínima e máxima aplicável a cada caso. Isso fica evidente quando se trata das infrações que a lei determina que sejam sancionadas com a penalidade de suspensão. O artigo 217 do Estatuto do Servidor estabelece que a suspensão poderá ser de até 90 dias e que “será aplicada em caso de falta grave, devidamente fundamentada ou de reincidência.” No entanto, a lei não explicita o que se entende por falta grave e nem o mínimo e máximo período de suspensão pode ser aplicado a cada tipo de infração. Ficará a critério dos membros da comissão de processo disciplinar e da procuradoria do Município estabelecer estas questões a cada caso, conforme suas percepções pessoais.
Todas essas disposições legais amplas, genéricas e indeterminadas se mostram um espaço propício para arbitrariedade na abertura e na tramitação dos processos administrativos disciplinares e de sindicância, bem como para a imposição de penalidades severas a pessoas que cometeram infrações de baixa gravidade ou até mesmo são inocentes e não tiveram sua culpa cabalmente comprovada no processo. Sem falar que tais condições também endossam a permanência de aspectos estruturais de machismo, racismo, xenofobia e outras formas de preconceitos nem sempre explícitos, mas sempre presentes.
Por isto é que o SISMUC sustenta a necessidade de alteração da legislação vigente para sua adequação aos princípios democráticos e constitucionais, o que deve ser feito com a participação dos representantes dos servidores municipais.