Uma conferência para tod@s as mulheres

Depois de 30 anos, o Brasil realiza a 2ª Conferência Nacional de Saúde
das Mulheres, com o tema “Saúde das Mulheres: Desafios para a Integralidade com
Equidade” em agosto. As delegadas eleitas nas etapas regionais da conferência,
realizadas nos estados e municípios, estarão em Brasília para conferir o que já
foi feito e propor novas políticas públicas para as mulheres.

A historiadora e membra do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e de
Direitos Humanos LGBT, Heliana Hemetério, afirma que a discussão sobre a saúde
da mulher ocorre num momento muito importante. Ele possibilita o debate sobre a
implementação da já existente Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da
Mulher (PNAISM).Para ela, as três
décadas que separam a realização das duas conferências oportunizam a retomada
das discussões, novos pensamentos sobre a política nacional de saúde das
mulheres e o fortalecimento do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS).

Ágora: A II
Conferência Nacional de Saúde da mulher ocorre depois de 30 anos. Qual a
importância no contexto da diversidade?

Heliana
Hemetério:
Quando assumimos o CNS pensávamos que
era preciso ter uma conferência específica de saúde das mulheres, pois a última
tinha ocorreu em 1986. O CNS é deliberativo e nós estamos firmes nos nossos
intentos, que é garantir o SUS a qualquer preço e a todo custo. Estamos fazendo
isso realmente nesse espaço de resistência. É importante para nós trazemos essa
discussão já que houve todos estes retrocessos que estão acontecendo na gestão
do país. Para nós, essa
conferência faz parte do nosso projeto de resistência dentro do CNS. É uma maneira
de trazer todos os conselheiros e a sociedade civil para construir conosco. As
companheiras feministas, do movimento de mulheres, do movimento campesino das
mulheres rurais, entre outros, estiveram presentes nas etapas que precederam a
conferência nacional. Uma grande novidade nessas etapas e nas conferências
livres foi a presença de mulheres lésbicas, travestis e transexuais. E a
diversidade é parte do trabalho que o CNS vem fazendo por meio da Comissão
intersetorial do CNS de Política de Promoção da Equidade (CIPPE), que é
coordenado pela Tathiane Aquino de Araújo, da Rede Nacional de Pessoas Trans
(Rede Trans Brasil), e por mim, que sou coordenadora adjunta. Essa comissão
reúne quatro segmentos – população negra; população LGBT; população do campo,
floresta e águas e povos e comunidades tradicionais e população em situação de
rua. A partir daí discutimos as especificidades, pois esses segmentos estão
representados em todas as mesas e em grupos. O Eixo 3 da conferência também
traz o debate à tona. Assim, entenda ou não é preciso incluir. Não entender e
não aceitar é um problema pessoal de cada um. O posicionamento político é a
garantia de direito para esses grupos.

Ágora: A
primeira conferência discutia a mulher a partir do sistema reprodutor feminino.
Como ampliar o debate para além do gênero biológico?

H.H:Discutir mulher a partir dos direitos sexuais
reprodutivos foi o caminho encontrado, e necessário, por conta dos abortos e,
por consequência, da mortalidade materna. Era preciso cuidar das mulheres para
que as mesmas não morressem após o parto, o que é um absurdo. Outro tema
daquele período era o aumento de cesariana e esterilização de mulheres,
sobretudo negras. Então, era preciso uma intervenção para por fim a estas
práticas. Hoje a saúde precisa olhar a mulher como um todo. Ela não é só útero.
Ela tem hipertensão, dor de cabeça, menopausa, diabetes. Enfim, tem todos os
outros problemas e, além disso, tem todo direito de cuidar desse corpo a partir
dela mesmo, ao invés de cuidar a partir de uma visão de procriação. Somos
criadas a cuidar do corpo a partir da responsabilidade da maternidade: “tenho
que cuidar porque vou engravidar e vou ter alguém no meu útero, vou ter que
cuidar dessa vida”. Entretanto, é preciso compreender que a maternidade é uma
opção e não uma obrigação para muitas mulheres. No caso das mulheres lésbicas e bissexuais o que as diferenciam são as
práticas sexuais e a orientação sexual. É só se despir da lesbofobia e entender
que elas têm útero, vagina e seios. Mas, por conta do preconceito foi
necessário criar a saúde integral LGBT, que atinge as lésbicas. No entanto, ela
é mais necessária no caso das travestis e transexuais, já que uma das questões
da rejeição à transfobia é o biológico. Elas não têm um aparelho biológico de
acordo com a identidade de gênero. A travesti também tem câncer nos seios, mas
o mastologista não quer fazer diagnóstico. Também precisa de um proctologista
ou urologista, pois continua com pênis. Mas precisa ser atendida com respeito e
não com piadas ou humilhações desnecessárias. O preconceito e discriminação se
revelam em todos esses casos. Uma mulher que aparente ser lésbica não é bem
atendida. No caso da transexual é pior ainda porque ninguém sabe se é homem ou
se é mulher. A transfobia é recorrente no atendimento dos hospitais da rede
pública. As travestis e transexuais têm um alto percentual de HIV por conta da
dificuldade de serem tratadas adequadamente, isso faz com que elas se afastem
do espaço onde deveriam estar para tratamento da saúde.

Ágora: Em
que casos podemos identificar a discriminação?

H.H:A discriminação acontece desde a negação em
chamá-las pelo nome social até quando a travesti ou a transexual estão gripadas
e as encaminham para Centros de Orientação e Aconselhamento (COA’s), que é
local onde acolhe os prováveis portadores de HIV. Tudo para eles é HIV. Não há entendimento que pode ser uma gripe, uma
gastrite, uma cólica renal. É um corpo desconhecido, rejeitado, violentado e ao
mesmo tempo um corpo desejado. Como uma sociedade machista como a nossa vai
aceitar um homem que nasceu homem nesse lugar de privilégio em determinado
momento da vida ele torna-se gay? Depois da decisão de não mais querer o corpo
masculino a sociedade vai tratar como este homem que, além de estar vestido de
mulher, reinventa o corpo de macho no corpo de fêmea? As travestis e
transexuais são assassinadas e com muita crueldade. A morte na transfobia não é
apenas um tiro; são 10 tiros, são 30 e não sei quantas facadas. A saúde
integral LGBT não deu conta do preconceito no atendimento por conta da
reprodução dessa heteronormatividade.

Ágora: Quais
os principais desafios quando se insere o debate da diversidade nestes espaços
de participação social?

HH:As conferências municipais, regionais e estaduais
são financiadas pelos gestores municipais e estaduais e a nacional é pelo
Ministério da Saúde. O grande desafio, enquanto militante é que existe uma
coisa que a gente fala do inconsciente coletivo que traz uma postura totalmente
emblemática, que é o negro que quer embranquecer, o pobre que quer ser rico e o
homossexual que não consegue se aceitar. Quando se discute a questão das
doenças sexualmente transmissíveis (DST), por exemplo, o discurso é raso, não
pedagógico e não atingem essas pessoas. Afirmam-se: “A televisão está aí; não
se protege quem não quer”. Isso é uma mentira porque não se consegue falar em
proteção total da relação sexual sem trabalhar a sexualidade. Não falamos de
sexualidade no país. As pessoas não dizem “hoje vou sair para transar”. Quais
os espaços físicos que os homossexuais têm para se beijar? Eles não têm; vivem
uma vida sexual escondida e quem tem as práticas sexuais às escondidas não faz
prevenção. A sexualidade desse grupo é reprimida e politicamente oprimida pela
sociedade.

Ágora: O controle
social é fundamental para a cidadania e para se alcançar o êxito das políticas
públicas, mas como atuar neste momento histórico no qual observa-se a redução
da participação popular?

HH:O Controle social tem que se fortalecer. Não há
nenhuma dúvida de que nesse governo eles querem acabar com o controle social.
Lamentavelmente várias instituições da sociedade civil têm se retirado dos
conselhos, que ainda são espaços de controle social. Temos que persistir, mas,
ao mesmo tempo, temos de trabalhar com as nossas instituições para ir adiante e
conseguir transformar as nossas reivindicações em políticas. E permanecer nos
conselhos e também atuar nas bases porque é o povo que segura os conselhos, que
traz propostas, que avalia a gestão e que pode, de fato, mudar a sociedade.

Ágora: Como
informar a população sobre as perdas na área de saúde pública que já estão em
curso na gestão Temer?

HH:A mídia já anunciou que as farmácias populares
mantidas com recursos federais, serão fechadas. Os pacientes vão ter de
recorrer às farmácias conveniadas, as quais não dispõem de todos os
medicamentos oferecidos pelo programa popular. Nós, do CNS, fizemos tudo o que
podíamos. Entramos com recurso, pedimos audiência com o ministro da saúde, mas
nos alegam que haverá economia com o fechamento deste programa. Nós sabemos,
mas a população de modo geral não sabe. Vivemos em três “Brasis”: o Brasil dos
ricos, o dos pobres e o dos pobres que não querem ser pobres. Estes sonham e
querem ter um plano de saúde e a partir disso, a discussão dos planos populares
entra em pauta. Entretanto a população desconhece que esses convênios não
garantem procedimentos como cirurgias mais complexas. É preciso ocupar os
espaços de resistência e explicar que as farmácias populares vão deixar de
atender quase dez milhões de pessoas, principalmente aquelas com 60 anos ou
mais e que esses planos populares não têm convênios com hospitais e que,
portanto, não vai corresponder às expectativas da população pobre. É preciso
fazer a população entender a importância da universalidade do SUS, que é a
política que garante o direito ao acesso, às ações e serviços de saúde pública
no Brasil.