Papa Francisco. Meritocracia – a legitimação ética da desigualdade

Há muito tempo leio sobre a ressignificação de palavras,
especialmente, muitas delas que sempre me foram muito gratas. Me recordo de um
texto de Hugo Assmann, que trabalhei ao longo do ano de 1998, que falava da
cooptação das linguagens progressistas. Já em 2002, por ocasião da realização
do Fórum Social Mundial, vi um texto de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant
com o título “A nova bíblia de tio Sam” em que os autores falam de
uma nova e estranha língua, chamada por eles de uma “nova vulgata”,
ou usando a expressão “novilíngua”, tomada de (George) Orwell.

Posteriormente trabalhei – já a especificidade da palavra
meritocracia – num texto para o blog, em que eu examino os espaços públicos e a
abertura de oportunidades como condição para a meritocracia efetivamente
acontecer e terminava com uma metáfora da minha horta e as plantinhas, das
quais as mais bonitas eu plantava na parte central e melhor adubada do
canteiro, as mais fraquinhas nas beiradas e as mais mirradinhas mesmo, em
ato de crueldade, eu simplesmente descartava, as jogava fora. Não valia a pena
cuidar delas. Jamais elas seriam absorvidas pelo mercado.

Recentemente vi em Boaventura Sousa Santos, no epílogo de seu
maravilhoso livro, “A difícil democracia – reinventar as
esquerdas”, o seguinte: “Mudaram os nomes às coisas para as coisas se
esquecerem do que eram. Assim desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria
austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada,
intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia”.

Agora estou diante das declarações do papa Francisco, em
exortação aos trabalhadores da empresa Ilva, em Gênova, no dia 29 de maio de
2017. Nele, o papa diz textualmente que com o discurso da meritocracia
“legitima-se eticamente a desigualdade”. O seu discurso, dirigido aos
trabalhadores, foi enfático e a parte que mais chamou atenção foi exatamente a
referência feita à meritocracia, palavra cuja ressignificação já vem sendo
trabalhada há mais de vinte anos. Vejamos um trecho do discurso:

“Outro valor que, na realidade, é um desvalor é a tão
elogiada “meritocracia”. A meritocracia fascina muito porque usa uma palavra
bonita: o “mérito”, mas, como a instrumentaliza e a usa de modo
ideológico, ela a desnaturaliza e a perverte. A “meritocracia”, para
além da boa fé dos tantos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética
da desigualdade”. Francisco continua em seu discurso dirigido aos
trabalhadores:

“Uma segunda consequência é a mudança da cultura da
pobreza. O pobre é considerado um desmerecido e, portanto, culpado. E, se a
pobreza é culpa do pobre, os ricos são exonerados de fazer algo. Mas essa não é
a lógica do Evangelho, não é a lógica da vida: encontramos a meritocracia no
Evangelho, em vez disso, na figura do irmão mais velho na parábola do filho
pródigo. Ele despreza o irmão mais novo e pensa que este deve continuar sendo
um fracassado, porque mereceu isso. Ao contrário, o pai pensa que nenhum filho
merece as bolotas dos porcos”.

Grande papa Francisco. Ele realmente representa a igreja de
Cristo e não a “Igreja poder” que se afirmou a partir de Constantino. Leonardo
Boff faz belas reflexões nesse sentido, ao mesmo tempo em que teme o que possa
vir contra Francisco por parte da Igreja como instituição de afirmação de
poder. Boff também destaca a simbologia do uso do nome Francisco.

(Os dados do discurso tem como fonte o Instituto
Humanitas da Unisinos).