Democracia – capitalismo, colonialismo e patriarcado

A difícil democracia – reinventar as esquerdas é um livro
fundamental para quem quiser efetivamente discutir a difícil democracia nos
dias de hoje. Dias de absoluto domínio da ideologia neoliberal e da mudança de
conceitos de territorialidade – desterritorialidade, de países ou de nações,
para se chegar ao chamado mercado mundial globalizado. Se o Estado, até certo
ponto, era um antídoto aos males do liberalismo econômico, o liberalismo
político, pela ação do Estado, procurava mitigar, ao menos um pouco, os seus
efeitos sociais perversos. O neoliberalismo é a mais anti social de todas a
ideologias.

Neste livro Boaventura Sousa Santos trabalha com os
conceitos de democracia de baixa e alta intensidade. A democracia de baixa intensidade
é a democracia liberal, representativa, formal e cujo principal componente é o
fenômeno das eleições. Marx designava o poder decorrente desta democracia
liberal como a trincheira da defesa dos interesses burgueses. É uma democracia
estática, que odeia e abomina a participação e qualquer movimento ascensional
nas bases da sociedade.

Sob esta democracia representativa o atual poder mundial
institui o que o autor chama de “fascismo social”, isto é, um sistema
que aboliu todos os direitos ligados ao trabalho e à seguridade social, assim
como o estamos vendo no Brasil após o golpe de 2016. Este fenômeno ocorre,
mesmo sob a aparência da normalidade democrática, de baixa intensidade. Este
poder mundial está associado ao capital financeiro, que para continuar
com a finalidade primeira do capitalismo, isto é, a acumulação, precisa
destruir direitos para continuar atingindo os seus perversos intentos
.
É um tempo em que se soma a ideologia política com os interesses econômicos das
minorias. É um tempo em que pretendem transformar a dominação em hegemonia,
para que os pobres se sintam como os culpados pela sua própria pobreza.

Estes são os difíceis tempos para a democracia, a qual se
refere o título, ao mesmo tempo que procura alternativas democráticas para às esquerdas,
como sugere a segunda parte do título. Diante desta difícil democracia o
sociólogo português propõe a radicalização da democracia, a democratização da
própria democracia e transformá-la numa democracia representativa, de alta
intensidade. Muitos outros espaços, para além da política, precisam ser
atingidos.

Esta alta intensidade implicaria em transformar radicalmente
as esferas de seis diferentes espaços e tempos sob os quais está estruturada a
nossa sociedade e nos quais ocorrem as relações de poder desiguais. Para ser
totalmente fiel ao texto, recorro à transcrição. “No espaço-tempo
doméstico, a forma de poder é o patriarcado ou relações sociais de sexo; no
espaço-tempo da produção, a forma de poder é a exploração centrada na relação
capital/trabalho; no espaço-tempo comunidade, a forma de poder é a
diferenciação desigual, ou seja, os processos pelas quais as comunidades
definem quem pertence e quem não pertence e se arrogam o direito de tratar
desigualmente quem não pertence; no espaço-tempo do mercado, a forma de poder é
o fetiche das mercadorias, ou seja, o modo como os objetos assumem vida própria
e controlam a subjetividade dos sujeitos (alienação); no espaço-tempo da
cidadania, a forma de poder é a dominação, ou seja, a desigualdade no acesso à
decisão política e no controle dos decisores políticos; e, finalmente, no
espaço-tempo mundial, a forma de poder é troca desigual, ou seja, a
desigualdade nos termos de troca internacionais, tanto econômicas como
políticas e militares”. (Página136-7. É possível vislumbrar este quadro
das relações?

Boaventura volta ao tema no epílogo do livro, epílogo que
propõe, seja lido apenas em 2050. Refletindo então, sobre o passado,
encontramos o seguinte: “Operavam três poderes em simultâneo, nenhum deles
democrático: capitalismo, colonialismo e patriarcado; servidos por vários
subpoderes, religiosos, midiáticos, geracionais, étnico-culturais, regionais.
Curiosamente, não sendo nenhum democrático, eram o sustentáculo da democracia
realmente existente”.

Refleti um pouco sobre estas três palavras-conceito,
capitalismo, colonialismo e patriarcado. Expus as três palavras a uma pessoa
praticamente analfabeta, destas coisas que ainda acontecem no Brasil. Por
coincidência, também era negra. Lhe perguntei se as relações, com as quais ele
se entrelaça na sociedade, eram autoritárias ou democráticas e se elas, em consequência, geravam justiça e
igualdade, ou injustiça e desigualdade. Explicitei mais, perguntando: como se
dão as suas relações de trabalho (capitalismo); como se dão as suas relações
étnico-raciais, (colonialismo) e como se dão as suas relações domésticas e
familiares (patriarcado)? A resposta foi batata. Pratica o autoritarismo quando
pode, mas na maioria das vezes é a sua vítima. Aliás, nem precisava recorrer a
este exemplo. Basta olhar para nós mesmos. Vivemos numa sociedade extremamente
autoritária, desigual e injusta. Coisas da cultura.

Realmente a missão das esquerdas é difícil. A difícil
democracia e a reinvenção das esquerdas. É preciso um enorme esforço teórico
para ler corretamente o mundo e um esforço prático, que envolve enorme soma de
esforços para que a indiferença e o medo não suplantem as esperanças.As
esperanças passam por um mundo de enormes desafios.