Excluídos da Saúde, cinco anos depois…

Ela conta o que mudou em sua vida cinco anos após a maior
greve do Sismuc (Sindicato dos Servidores Municipais de Curitiba), ocorrida em
2011 e que durou 74. Na época, o prefeito Luciano Ducci reduziu a jornada de 30
horas apenas para a enfermagem e para a odontologia. Com isso dezenas de
carreiras da saúde ficaram de fora do projeto, o que motivou a extensa
paralisação. A “greve dos excluídos” é considerada fundamental para a perda de
popularidade do prefeito, que é médico e sequer passou para o segundo turno em
2012.

Jornal do Sismuc: 5
anos depois, o que mudou na sua vida. O quê a greve transformou em você?

Paula Campos, fonoaudióloga: Muitas coisas mudaram nesse período,
creio que a greve foi marco para minha politização. Após a greve passei a
prestar mais atenção às questões políticas, tais como planos de governo,
propostas de candidatos, fazendo uma reflexão mais crítica desses dados e
usando tais critérios para escolher meus candidatos. Outro aspecto que tomo a
greve como um marco foi a minha inserção no controle social. Logo depois da
greve passei a me envolver com o Conselho Municipal de Saúde e hoje estou
conselheira municipal de saúde titular há duas gestões. Hoje me sinto mais
realizada profissional e pessoalmente por ter um ideal para lutar, defendendo a
igualdade, a garantia de direitos, sentindo-me parte de um movimento de
transformação da sociedade (que tem várias facetas) em um lugar mais justo e
democrático. Sentir-se construindo uma história, procurando fazer a diferença e
poder olhar para os meus filhos e dizer que batalhei para construir um mundo
melhor para eles realmente não tem preço.


Jornal do Sismuc: 5
de dezembro de 2011. Você consegue recordar como foi seu primeiro dia? O que
você sentiu?

Paula: Foram tantas emoções conflitantes! Foi a minha primeira
greve, estava muito ansiosa, não sabia se o movimento teria força/adesão,
porque a gente sabe que pra incitar a greve tem vários, mas na hora de bancar o
movimento muitos recuam. Do grupo de fonoaudiólogos tivemos uma boa adesão
(aproximadamente 50% do quadro), mas no meu local de trabalho apenas eu e outra
colega entramos. A chegada à Praça Santos Andrade, ver aos poucos, outras
pessoas chegando de todos os cantos o movimento de se agrupar, tirar a foto,
iniciar a caminhada atrás do caminhão, a conversa com a população foram tomando
uma dimensão grande, apesar de todas as incertezas sobre o rumo do movimento
havia a certeza de que estávamos todos ali unidos pela convicção da luta contra
a exclusão que havíamos sofrido. Desde o início dava pra sentir que
independente do resultado faríamos história.


Jornal do Sismuc: A
greve dos excluídos foi uma das mais duras. 74 dias, atravessando Natal, Ano
Novo, quase chegando ao carnaval. Qual foi o momento mais difícil em sua
avaliação?

Paula: Realmente foi um período horrível para uma greve. Final de
ano, férias de muita gente chegando. Na verdade, creio que no início fomos um
tanto inocentes, não acreditávamos que seríamos tão desprezados pela gestão e
apostávamos numa abertura de um canal de diálogo. Tenho quase certeza que, se a
gestão tivesse sinalizado com a criação de um grupo de estudos para viabilidade
da implementação das 30 horas teríamos ficado satisfeitos. Entretanto, a gestão
apostou na desmobilização das minorias, na truculência (ao tentar nos
desarticular por medidas administrativas e judiciais), na falta de diálogo e na
desvalorização e despolitização das nossas categorias. Não consigo pontuar um
momento mais difícil desse período, pra mim cada dia foi difícil ao perceber
essa postura de descaso da gestão que nos levou manter a greve. De certa forma
a gestão alimentou a greve, pois cada vez que a gente desaminava e pensava:
vamos desistir, a gestão nos humilhava de alguma forma e a gente se renovava
para continuar mais um pouco. A questão nos mantinha juntos era o brio, o
orgulho de ser profissional de saúde, de amar a sua profissão, de lutar pela
isonomia entre as categorias, de sermos respeitados como seres pensantes e
politizados. Cada uma dessas coisas foi posta em dúvida pela gestão e sempre
respondemos com muita hombridade, nos mantendo coesos na luta e nos nossos
ideais, não permitindo a separação do movimento por categorias e nos mantendo
fortes dentro dessa unidade chamada “excluídos”.

Para além dos momentos difíceis,
como a solidariedade para com os colegas que ficaram “acampados” na prefeitura,
comer marmita no meio da praça, caminhadas intermináveis sob calor escaldante,
as assembleias para entender a judicialização do movimento e suas repercussões,
enfim tantos momentos, mas acredito que nossa greve foi muito profícua em
criatividade! Como esquecer os nossos vários hits de sucesso? “Cai Chomatas!!”
Ou os atos supercriativos: como a marcha fúnebre, o natal negro, com direito a
ceia na porta da casa do prefeito? Já tínhamos até a marchinha pronta para o
carnaval! Nosso comando de greve foi incrível em criatividade. Nunca vou esquecer
que minha filha mais velha aprendeu assoprar apito num ato no Edifício Laucas
(Prédio Administrativo da Prefeitura de Curitiba). Estávamos fazendo um apitaço
e, quando vi, alguém tinha dado um apito para minha filha de 18 meses e lá
estava ela muito feliz fazendo barulho e tentando cantar nossos hits.

Jornal do Sismuc: A
greve sempre traz rugas e novas amizades. Você conserva amigos e por quê?

Paula: Realmente a greve me trouxe muitas novas amizades. Conheci
pessoas com as quais jamais encontraria dentro das rotinas de trabalho, aprendi
sobre o trabalho de algumas profissões e principalmente colocamos a
Fonoaudiologia dentro das categorias da saúde. Éramos, provavelmente, o menor
grupo dentro das categorias dos excluídos. Na verdade, a segunda menor, creio
que só ganhávamos dos sociólogos nesse quesito. A maioria dos colegas nem sabia
da existência da nossa categoria nos quadros da prefeitura e muito menos da
nossa situação “hibrida” pela interface e atuação em equipamentos da educação.
Entretanto, me perguntaste sobre amizades. Com uma grata surpresa a adesão do
meu distrito de trabalho foi quase que integral, portanto a greve me permitiu
conhecer e conviver com aqueles que, hoje, são meus companheiros diários de
trabalho no NASF (Núcleos de Apoio à Saúde da Família). De certa forma a greve
e aquela convivência íntima que tivemos durante esse período, facilitou muito a
minha inserção posterior no NASF (que se deu na gestão Gustavo Fruet). Além
dessas amizades há o carinho e a simpatia por vários outros colegas que a
rotina nos afastou, mas que as redes sociais nos mantêm em contato, preservando
esse sentimento interesse e admiração mútua. Quanto eventualmente nos
encontramos em algum evento ou mesmo em algum outro movimento de luta aquele
sentimento forte de união e admiração construído ao longo da greve surge com
muita força.

Jornal do Sismuc:
Você lembra como surgiram os excluídos? Na época, o prefeito Ducci escolheu
reduzir jornada para enfermagem e odontologia. Com isso, excluiu carreiras da
saúde. O movimento nasce dessa separação?

Paula: Sou uma das pessoas que estava naquele momento, que sem
dúvida, foi a concepção do movimento dos excluídos. Naquela época ainda era
muito novata na rede, creio que era a minha primeira assembleia no Sismuc, nem
tinha compreendido direito qual era a dimensão da pauta em questão. Mas a
tensão e o sentimento de intolerância entre colegas que presenciei naquele dia
é um horror que jamais vou conseguir esquecer! Recordo-me que, da minha
categoria fomos apenas eu e a Andreza naquela assembleia, chegamos muito
perdidas, sem conhecer ninguém e principalmente sem entender o motivo de tanta
tensão no ar. Como éramos ambas novatas, não conseguíamos diferenciar as
pessoas/categorias presentes, estávamos inicialmente todos misturados.
Entretanto, na medida em que as discussões foram acontecendo e a enfermagem foi
se posicionando de forma extremamente classista com as demais categorias da
saúde, nós que éramos um grupo relativamente pequeno, fomos nos agrupando, como
que acuados num mesmo canto. Jamais vou esquecer o momento em que
instintivamente os depois denominados “excluídos” fomos nos agrupando na margem
direita do salão, unidos pela perplexidade da intolerância e hostilidade dos
colegas. Quanto mais a assembleia ficava tensa, mais a gente se aproximava uns
dos outros, chegando a fazer contato físico com colegas que nunca tínhamos
visto antes, num movimento protetivo mútuo, pois por um certo momento, cheguei
a acreditar que seríamos agredidos fisicamente, tal o nível de tensão que se
gerou entre nós.

Creio que para o pessoal do
sindicato também deve ter sido uma situação muito difícil de contornar. Teve um
momento em que estava ombro a ombro com pessoas que nunca tinha visto na minha
vida. Com certeza um dos momentos mais aterrorizantes que já vivenciei. Por
outro lado, creio que naquele momento foi forjado o vigor, o brio e a
perseverança que sustentou a nossa longa greve. Nas grandes adversidades se
criam os melhores guerreiros e os grandes líderes. Acredito que a greve dos
excluídos provou isso sem dúvida. Agradeço ao Sismuc por ter tido presença de
espírito e liderança para conseguir conciliar ânimos naquele momento da
assembleia e mantido nossa integridade. Ainda me lembro de também que a gente
perdeu por poucos votos a aprovação da redução da jornada apenas para a
odontologia e enfermagem e que no final da assembleia ainda ficamos com aquela
sensação de que poderíamos ter trazido um ou dois amigos a mais e teríamos tido
um outro cenário. Isso também nos ensinou que é preciso se articular para
garantir nossos direitos. Enfim, creio que quem sobreviveu àquela assembleia
teve uma grande lição sobre a importância de ser politizado.

Jornal do Sismuc: A
redução para os excluídos ocorreu apenas na gestão Fruet. Qual foi a sua
sensação quando ocorreu essa conquista?

Paula: Nossa acho que nem consigo
traduzir em palavras esse sentimento! Creio que foi a coroação de um grande
esforço, de que nada vem de graça, mas que a luta vale a pena. Podemos perder
algumas batalhas, mas isso não significa que perdemos a guerra. Saímos da greve
sem as nossas 30 horas, sofremos muitas represálias, muita perseguição, tivemos
perdas financeiras, desgastes junto à colegas e à população, mas mantivemos a
luta! Saímos em campanha contra a gestão, derrubamos o candidato que já contava
como certa sua eleição por poucos votos. Lembro-me que fizemos as contas e o
que faltou para o Luciano Ducci ir para o segundo turno era equivalente ao
quantitativo dos excluídos e seus familiares diretos! A derrota dele nas
eleições foi um prazer inenarrável. O movimento teve tanta repercussão que os
demais candidatos já haviam se comprometido com a nossa pauta e a gestão Fruet
cumpriu com sua palavra, honrando essa promessa de campanha. Além de nos ter
concedido a redução da jornada, também houve a retirada das sanções
administrativas decorrentes da greve, muitos colegas tiveram perdas na carreira
(crescimento e licenças) por conta das “faltas” durante a greve. Outra situação
importante foi que muitos dos excluídos acabaram assumindo cargos de confiança
durante a gestão Fruet, desmistificando esse senso comum de que quem faz greve
fica com a carreira marcada e não terá mais oportunidades profissionais. Pra
mim a assinatura da nossa redução para 30 horas teve essa sensação de vitória e
consagração de que não devemos desistir dos nossos sonhos e nossos ideais, de
que é possível construir um mundo mais justo, igualitário e mais humano!
Renovou minha fé na humanidade, na ética das pessoas e a certeza de que a união
faz a força. Os excluídos foram compostos de várias categorias de pequena
expressão numérica dentro do RH da saúde, mas provamos que juntos somos fortes!


Jornal do Sismuc:
Depois da redução, o que mudou no seu cotidiano de trabalho e quais são os
desafios para a saúde?

Paula: Foram tantas mudanças. Hoje tenho mais qualidade de vida,
posso passar mais tempo com meus filhos, a Bruna (que era quase um bebê naquela
época) já está no primeiro ano e nesse meio tempo veio o Miguel que está com três
anos agora. Com a redução eu consigo proporcionar a eles algumas atividades
extra (como balé e violão), chegando em casa com tempo para que possam brincar
na praça e ainda dormirem cedo. Isso falando do impacto pessoal, quanto ao
trabalho para mim mudou muito, pois não estou mais no mesmo local que estava na
época da greve, houve uma possibilidade de crescimento profissional ao
ingressar no NASF (a fonoaudiologia não tinha essa possibilidade de inserção
profissional antes da greve) e com isso me sentir mais realizada
profissionalmente, fazendo um trabalho que traz mais qualidade de vida ao
usuário do SUS, vivenciando mais a interdisciplinariedade com outras categorias
da saúde. Com a redução também ficou mais viável participar ativamente do Controle
Social, na categoria de trabalhador da Saúde, pois a participação se dá fora do
horário de trabalho, não necessitando da aprovação da chefia e sem prejuízo das
atividades laborais junto aos usuários. Quanto aos desafios são muitos! Além da
complexidade inerente ao trabalho na área de saúde, onde precisamos estar se reinventando,
adaptando, criando novas estratégias para enfrentamento de problemas coletivos,
sempre atentos a indicadores para realizar um planejamento que enfrente os
problemas mais pertinentes do momento, sem perder as perspectivas de médio e
longo prazo das ações, creio que os atuais ataques explícitos aos direitos
duramente adquiridos, como a PEC 241/55 que vai trazer um impacto financeiro
absurdo em diversas áreas, entre elas a saúde. São questões as quais não
podemos ficar alheios. Acredito que o momento político atual será um grande
divisor de águas e vai obrigar muita gente a sair da inércia, pois ou nos
mobilizamos e politizamos ou seremos aniquilados. O SUS já foi construído com
muita luta e será preciso uma luta maior ainda para mantê-lo. Enfim, são lutas em
longo prazo, o tempo irá contar nossas histórias, espero que tenham um final
feliz como foi a nossa trajetória com a redução da jornada para 30 horas e que
possamos manter o brio e o vigor que nos manteve juntos durante o movimento dos
Excluídos como combustível para as novas lutas/batalhas que vierem!

Creio que no início fomos um tanto inocentes, não acreditávamos que seríamos tão desprezados pela gestão e apostávamos numa abertura de um canal de diálogo. Mas é nas grandes adversidades se criam os melhores guerreiros e os grandes líderes.

A gestão alimentou a greve, pois cada vez que a gente desaminava e pensava: vamos desistir, a gestão nos humilhava de alguma forma e a gente se renovava para continuar mais um pouco. Já tínhamos até a marchinha pronta para o carnaval!

Éramos um grupo relativamente pequeno, fomos nos agrupando, como que acuados num mesmo canto. Quanto mais a assembleia ficava tensa, mais a gente se aproximava uns dos outros. Isso também nos ensinou que é preciso se articular.

Além de nos ter concedido a redução da jornada, também houve a retirada das sanções administrativas decorrentes da greve, muitos colegas tiveram perdas na carreira