A morte da Carminha

Claudinha chegou ao salão de beleza atrasada num dia normal de semana. Correu direto ao banheiro. Talvez assim ela pudesse chorar discretamente. Uma vez por semana essa cena se repete. Os dramas da manicure ainda não geraram sua demissão porque ela foi indicada por uma amiga da dona do salão – dizem os corredores. Outras reconhecem que ninguém define tão bem quanto ela o tom do esmalte com a tonalidade da pele da pessoa. Claudinha convenceu inúmeras vezes aquelas senhoras de que laranja fica melhor do que vermelho, por exemplo, e que azul celeste também passa credibilidade, mesmo sendo extravagante. Sugestões que fazem a trabalhadora ser tão procurada a ponto de estender sua carga horária, embora o salário e as horas extras não sejam ‘lá um brinco’. Mas, car@s leitor@s, “o alicate que retira a cutícula também é o mesmo que leva um pedaço da pele”, ou seja, nem a mais eficiente profissional tem o direito de deixar seus problemas pessoais atrapalharem a rotina de ocupadíssimas senhoras.

          Companheirismo, é disso que precisamos. A postura sempre confiável de Nara fez com que Claudinha abrisse a porta do banheiro e mais uma vez contasse à amiga sobre a bebedeira do marido. De um tempo pra cá Nara percebeu que as reclamações ficaram mais intensas depois que o esposo da manicure obteve crescimento na carreira. Com mais dinheiro, “ele bebe mais”, reclama Claudinha, “e ainda gasta o dinheiro da comida e do remédio só para pagar rodadas extras para os camaradas”. A conseqüência disso é a necessidade de Nara constantemente socorrer a amiga como retirar remédio na unidade de saúde com seu próprio cadastro ou sair mais cedo do salão para participar da reunião de pais dos seus afilhados no cmei. E a cada galho quebrado três desculpas eram dadas. A do marido a Claudinha, da amiga à comadre e da tia à educadora. A primeira justificativa nunca convencia, a segunda era engolida pela amizade e a terceira, da tia para a educadora, só era aceita para não criar incomodo. Mas esse ciclo foi interrompido quando Nara tomou um pito durante uma reunião. Disse a educadora: “Dona Nara, eu entendo sua preocupação com seus afilhados, mas é importante que os pais acompanhem o desenvolvimento das crianças”.

            Planejar não é como escolher a cor do esmalte, rosa ou vermelho, mas saber que as nossas decisões podem ter imprevistos que precisam ser solucionados. Uma dessas intempéries é não confiar cegamente em conversa de marido (ou político), como fez Claudinha. Ele havia jurado que não sairia para beber, pois buscaria os filhos na escola e falaria com a pedagoga. Passaram-se as horas e a manicure recebeu ligação avisando que o cmei seria fechado e que ambos filhos estavam sob custódia de um guarda municipal. A notícia desesperou a mãe que largou a última cliente. Algumas horas depois o marido chegou completamente embriagado. Os dois brigaram e ele tentou se justificar. Contou que estava trabalhando na obra quando viu um pessoal todo de preto descendo a rua como se estivesse de luto. Eles carregavam um caixão com um símbolo de uma pessoa crucificada. Estavam todos calados. O silêncio só era interrompido pelo caminhão que tocava uma música bem triste. Aí eles pararam todos de frente de um prédio público e começaram a se abraçar e a chorar. No dia anterior, essa mesma turma fazia o maior barulho naquele local. Apitavam, agitavam cartazes, dançavam e cantavam “Carminha, assim você nos mata. Dá às 30 horas, dá-dá”. O contraste do ânimo para a apatia em dois dias intrigou a todos. Realmente parecia que alguma coisa tinha dado muito errado. Aí – prossegue o marido – uma mulher veio subindo a rua e perguntou a eles o que havia ocorrido. Ele disse: “Vixi Dona, acho que foi a tal da Carminha que morreu. Não vai mais dar as 30 horas das meninas”. Como a história era curiosa demais para ele entender de maneira sóbria, resolveu sair com os colegas para beber em homenagem a aquela gente.

           A narração dessa cena mostra que muito do que nos sucede não nos compete, pois a falta de solução do problema daqueles grevistas teve efeito direto na vida de muitas pessoas, inclusive de Claudinha, que havia chegado apenas 30 minutos atrasada. Ela não conseguia acreditar que aquele povo estivesse tanto tempo na rua, muito menos na versão do marido. Mas Nara consolava a amiga pedindo que ela erguesse a cabeça. A gerente do salão já havia advertido que a sua a cliente a aguardava e parecia ser gente importante. Claudinha, tentando se recompor, perguntou quem era a ilustre. A amiga disse que era uma tal de Maria do Carmo. Surpreendida pela coincidência nos nomes, a manicure disse improviso:

           – Pois diga a essa senhora que pra mim a Carminha morreu.