Contestado: uma guerra entre camponeses e capitalistas

O centenário do maior conflito civil das Américas que envolveu camponeses e interesses políticos e econômicos na região do chamado Contestado é marcado pelo lançamento do livro do jornalista curitibano Milton Ivan Heller, cujo título é “A atualidade do Contestado”. Familiarizado com temas que representam verdadeiros tabus para a sociedade paranaense, Heller traz neste livro, lançado pela JM Editora, um importante arsenal de documentos que comprovam os absurdos cometidos pelo governo federal desde quando o Paraná emancipou-se de São Paulo, em 1853. 

Os interesses norte-americanos, capitaneados pelo então presidente dos EUA Teodoro Roosevelt e apoiado pelo empresário compatriota Percyval Farquhar, que controlava ferrovias em todo o Brasil, além de ações em diferentes estados, fazendas e indústrias estão entre os motivos para o conflito retratado no livro de Heller. A empresa Brazil Railway, em conjunto com a subsidiária Lumber, e com apoio do seu advogado Affonso Camargo, então vice-governador do Paraná, seria responsável pela sumária desapropriação de terras no entorno da linha férrea que ligou São Paulo ao Rio Grande do Sul. Aproveitando-se do desmatamento de 15 km de cada lado da linha, os empresários foram expulsando os moradores.

A disputa de interesses econômicos fomentaria um preconceito contra os povos que habitavam a região. Taxados de fanáticos, bandidos e jagunços, os “sertanejos”, como chama Heller, na verdade, “viviam quase que ignorados pela administração do Paraná e de Santa Catarina. Trabalhavam em suas posses, ou então como peões de fazendeiros latifundiários, conhecidos como papa-terras. Eram também agregados das fazendas, tropeiros ou ex-tropeiros, negros e mulatos descendentes de antigos escravos foragidos para a região, descendentes de índios, caboclos, imigrantes e/ou filhos de imigrantes, etc.” 

Caracteriza a obra a relação de personagens que fizeram parte do episódio. Dentre eles o capitão João Teixeira de Matos Costa, o general Fernando Setembrino de Carvalho, e o capitão José Vieira da Rosa, responsáveis pelo massacre realizado contra civis camponeses em quatro anos de conflito. Em favor dos interesses econômicos, as ações dos presidentes Marechal Hermes da Fonseca e Wenceslau Brás, resultaram na morte de mais de 10 mil pessoas, entre soldados e camponeses. 

Irani e Taquaruçu

O livro relembra também dois episódios marcantes sobre a guerra do Contestado. A batalha em Irani, distrito de Joaçaba, em 1912, onde o Alferes João Gualberto, enviado pelo governo federal para acabar com a revolta, foi morto pelos revoltosos, como resultado da subestimação da força dos camponeses. O fato seria o estopim para a resposta do governo federal. O segundo episódio marcante é o cerco em Taquaruçú, em 1914, onde os sertanejos foram massacrados, juntamente com suas lideranças, pelas forças militares do Estado.

Trata-se de uma versão ainda obscura sobre a história paranaense e catarinense, retratada em grande parte na série de referências bibliográficas dispostas durante a obra de Heller e que seriam indispensáveis para quem se propõe a falar sobre o Contestado.

Disputa entre PR e SC

Heller mostra que a disputa pela região tinha um motivo financeiro, antes de mais nada. Tratava-se do local onde era extraída a erva-mate, que se constituiu no primeiro ciclo econômico do sul do país e transformou o Paraná no principal exportador do produto do país. Até então, a recente emancipação do Paraná resultaria em uma cessão significativa do território do estado para Santa Catarina, que se estendia até o limite com o Rio Grande do Sul. Cidades como Lages, Porto União, Canoinhas, Mafra, Curitibanos e São Francisco do Sul foram anexadas ao território catarinense por meio de uma série de irregularidades cometidas pelo governo federal.

Mais do que a disputa territorial entre Paraná e Santa Catarina, o livro de Heller aponta para os fatos que resultaram na desapropriação de um povo camponês e seu posterior massacre em benefício de interesses econômicos internacionais. A guerra do Contestado deve destacar a “situação de miséria e abandono em que vivia a sua população, influenciada por monges e beatos e oprimido pelo poder ilimitado do latifúndio”.